Quentin Skinner - O Príncipe de Maquiavel e a “arte” de governar

O Príncipe de Maquiavel e a “arte” de governar

Na sua célebre obra, O Príncipe, Maquiavel pretendia, sobretudo, ensinar como manter um Estado. As armas e os homens são os dois grandes temas sobre os quais o autor desenvolve seus argumentos e conselhos. (p. 57) É o que mostra Quentin Skinner em O Conselheiro dos Príncipes.
Como deixa explícito em sua dedicatória, o Maquiavel almejava oferecer aos Medici, família que havia conquistado o poder de Florença, uma prova de sua lealdade e ajudá-los a manter o novo principado. Para isso escreveu, principalmente, conselhos para um principado novo e procurou deixar claro que era um homem um grande conhecedor no assunto.
Para justificar seu foco em principados novos,  argumenta que os governos hereditários enfrentariam menos dificuldades e, por isso, precisariam menos de seus conselhos (p. 42). Ele enfatiza que o principado que necessita de conselhos mais urgentes por parte e um especialista são os que chegaram ao poder através da Fortuna e com armas estrangeiras - e foi exatamente assim que os Medici conquistaram o poder em Florença (p. 44).
É necessário lembrar, porém, que Maquiavel escreveu o Príncipe falando sobre como as coisas eram (ou como ele achava que eram), sobre os exemplos ao longo da história que ele conhecia, não necessariamente em como ele achava que elas deveriam ser. Por mais que ele tivesse pretensões de aplicar o conhecimento na realidade, a obra, em si, parece apenas descrever a realidade que Maquiavel via.
No capítulo 6 encontra-se a antítese que Skinner considera talvez a mais importante de toda teoria política de Maquiavel, em torna da qual o raciocínio de O Príncipe se desenvolve: “os principados novos são adquiridos e mantidos ou “através da virtu, de um homem e de suas próprias armas”, ou “através da Fortuna e com as forças de outros homens”. (p. 43)
Tanto Maquiavel quanto seus contemporâneos, se buscassem conhecer a autoridade da Fortuna, considerada por eles uma deusa, se voltariam para historiadores e moralistas romanos, que nunca pensaram na Fortuna como uma “força inexoravelmente maligna”, pelo contrário, viam nela uma boa deusa, que traria honra e glória. (p.45)
A principal questão levantada por eles então é: como conquistar a Fortuna? Tito Lívio, Cícero e os romanos de seu tempo pensavam que, mesmo sendo uma deusa, a Fortuna era mulher e, por isso, seria atraída pelo vir, o homem verdadeiramente varonil (p.46). Ela recompensaria a coragem viril.
Esta análise clássica foi inteiramente abandonada com o triunfo do cristianismo e natureza da Fortuna carregou um novo significado. Ela se tornou indiferente em relação ao mérito humano. Segundo Boécio, que afirmou com mais veemência a visão cristã, a Fortuna possui um poder cego e a “independência não pode ser alcançada através da riqueza, nem o poder através da realeza, nem o respeito através do ofício, nem a fama através da glória”. (p 47)
Porém, com a recuperação dos valores clássicos no Renascimento, a noção cristã de Fortuna foi sendo cada vez mais questionada. Mudou-se a perspectiva em relação à excelência e a dignidade e ressaltou-se a liberdade do arbítrio. Então, no século XV, seguindo essa nova atitude de liberdade, os humanistas italianos foram capazes de reconstruir a imagem da deusa Fortuna.
Maquiavel, quando fala da Fortuna e do arbítrio, diz que “a liberdade do homem está longe de ser absoluta, já que a Fortuna é imensamente poderosa e pode ser senhora de metade de nossas ações”, mas também afirma que se o nosso destino estivesse completamente determinado por ela seria o mesmo que “anular nosso livre-arbítrio”. (p 49) Ele faz-se então a pergunta que faziam os romanos: como é possível conquistar e se aliar à Fortuna?
Para ele, reiterando argumentos clássicos, a deusa é amiga dos bravos, dos mais cheios de ânimo. É sobretudo a virtus do verdadeiro vir que a estimula e ela se enfurece sobretudo com a falta destes predicados – da virtù. Ele deu um sentido erótico incomum que enfatiza a conquista pela violência, friamente. Idéia também enfatizada por Sêneca (p. 50), autor clássico, sendo possível perceber a recorrência de Maquiavel às leituras clássicas.
Ele parte, em seguida, para os objetivos que um príncipe novo deve alcançar para manternere lo stato, isto é, manter os negócios como os encontrou e preservar sob controle o sistema de governo. (p. 51) Ele parte do pressuposto clássico de que todos os homens desejam acima de tudo conquistar os bens da Fortuna, ignorando os preceitos cristãos. Porém, assim como os moralistas clássicos, descarta a obtenção de riqueza como objetivo básico, sendo o mais nobre propósito para um príncipe prudente e virtuoso criar um governo que trará honra e glória a seu nome. Os novos governantes poderiam ainda conquistar uma “dupla glória”, criando um novo principado e fortalecendo-o com boas leis, armas e exemplos. (p. 52)
Maquiavel, segundo Skinner, faz então sua próxima e mais importante questão: “que máximas e preceitos a serem oferecidos a um governante novo, que sejam de natureza tal que, uma vez ‘postos em prática com prudência”., possam fazê-lo “ parecer um governante antigo”? (p. 53)
Seu primeiro argumento defende boas leis e boas armas, tendo as armas como o mais importante, pois para ele não é possível haver “boas leis onde não há boas armas”. E um príncipe sábio não dever ter nenhum outro objeto de preocupação que não “a guerra, suas leis e disciplina”. Em seguida, Maquiavel faz ampla defesa às milícias de cidadãos, rebaixando os mercenários a soldo, que para ele não eram dignos de confiança.
De forma geral, os historiadores concordam que o sistema de mercenários foi bastante eficaz. Mas Maquiavel tinha seus próprios motivos para pensar assim, já que sua cidade natal, nas mãos de comandantes mercenários, sofreu uma série de humilhações durante a guerra contra Pisa. Para ele, a cidade deveria armar-se com suas próprias armas e seus próprios homens. (p. 55- 56)
Neste contexto, a estratégia de Cesar Bórgia enquanto comandante militar foi o grande exemplo de conduta para um novo governante na opinião de Maquiavel. O duque teria reconhecido sem hesitar que os mercenários eram “incertos e infiéis” e mereciam ser eliminados sem piedade, além de não depender da Fortuna e das armas estrangeiras, recrutando seus próprios soldados e tornando-se “o único senhor de suas próprias tropas”. (p. 57) E tendo um exercito sólido, quais qualidades de liderança são apropriadas para a função de príncipe? Para ele, a os Medici possuiam todas: virtù, favorecimento da Fortuna e em igual medida, favorecimento de Deus e da Igreja.
Mas como Maquiavel pensava, afinal, a virtù? Para ele o conceito geral de virtù contém todas as virtudes cardeais (sabedoria, justiça, coragem e temperança) e principescas (honradez, a liberalidade, veracidade, piedade).  O autor re-significou a virtude e defendeu que nenhum governante na busca da glória tem condições de praticar por completo e em todos os momentos as qualidades que normalmente são consideradas boas. Um príncipe sábio deverá ser, assim, guiado principalmente pela necessidade e se quiser manter seu governo, “com freqüência precisará agir de modo contrario à caridade , à humanidade e à religião”.
O êxito da arte de governar dependeria diretamente, portanto, da capacidade de reconhecer a força das circunstâncias, aceitando o que dita a necessidade e se adaptando à “natureza dos tempos”. O príncipe verdadeiramente virtuoso de Maquiavel é, então, o que está disposto a fazer tudo aquilo que for ditado pela necessidade do momento. (p.65)

Entretanto, para os moralistas clássicos, que tinham outra concepção de virtude, pela força e pela fraude perde-se a virtuosidade. Viam na astúcia e na força características animais, de que o príncipe deveria se afastar. Já para Maquiavel, em algumas situações, o correto é escolher agir como leão ou raposa, inclusive por que os homens tendem a ser maus. Assim, acrescenta ao seu conceito de virtude características que antes eram moralmente reprovadas (p. 66-72), faz uma crítica devastadora ao humanismo clássico (p. 62-63) e realiza uma revolução moral na “arte de governar”.

Resenha feta por Mariana Donati Valle

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