Dois conceitos de liberdade – Isaiah Belin
Dois conceitos de
liberdade – Isaiah Belin
Resenhado por Mariana Donati Valle
Os estudos sobre teoria política e social nascem e prosperam
na discórdia. É o que diz Isaiah Berlin ao se debruçar sobre os conceitos de
liberdade “positiva” e “negativa”. Na introdução de Dois conceitos de liberdade o autor anuncia sua proposta de
reflexão sobre o poder das idéias e o entrelaçamento indissolúvel da política
com outras formas de investigação filosófica, alertando para as crenças políticas
primitivas e irrefletidas. Além disso pretende nos fazer refletir sobre a
importância de compreendermos as questões dominantes de nosso mundo, em
especial “ a maior dessas questões”: a guerra aberta entre dois sistemas de
idéias que tentam responder à questão central da política – a questão da
obediência e da coerção – de maneira oposta e conflitante.
A liberdade é elogiada por quase todo moralista da história,
porém este termo possui muitos sentidos ao longo da história e o autor se detém
a apenas duas de suas acepções, as quais considera centrais: a liberdade “negativa”
e a liberdade “positiva”.
A primeira se refere à liberdade concebida pelos liberais em
que se pode agir sem ser “obstruído por outros” e sem coerção. Ser livre neste
sentido significa não sofrer interferência dos outros indivíduos. Responde à
pergunta: Em que medida posso e/ou devo ser coagido?
Esta liberdade, para os filósofos políticos ingleses
clássicos, não poderia ser ilimitada, pois levaria ao caos social. “É
necessário restringir a liberdade em proveito de outros valores e até da
própria liberdade”. Estes pensadores propõem que a área de livre ação do homem
deve ser limitada pela lei. Mas deve haver o mínimo de liberdade para que não
degrademos ou neguemos nossa natureza.
É então preciso que se trace uma fronteira entre a área da
vida privada e a da autoridade pública, já que a liberdade de alguns depende da
repressão de outros. E para que os homens e mulheres analfabetos, doentes e
miseráveis possam usufruir do aumento de sua liberdade é necessário que haja
uma autoridade que os proteja, que os alimente, que os eduque, que ofereça
ajuda médica; isto é, o mínimo para que sejam considerados realmente livres.
Porque, diz o autor, “se minha liberdade ou a de minha classe ou nação depende
da desgraça de outros seres humanos, o sistema que promove tal coisa é injusto
e imoral. Porém, se restrinjo minha liberdade, se abro mão dela e não aumento
as condições para a liberdade individual dos outros, então há uma perda total
de liberdade” (e nenhum ganho).
“O sentido “positivo” da palavra “liberdade” (que responde à
pergunta: porque e a quem devo obedecer?) provém do desejo que o indivíduo nutre
de ser seu próprio senhor”, diz o autor. Se liga ao direito político, de
participar das decisões políticas e à obediência, onde é necessário o
sacrifício dos indivíduos para a liberdade da sociedade.
A liberdade negativa, que se dá quando não sou impedido
pelos outros de escolher como agir, quando faço o que desejo; e a liberdade
positiva, que se dá quando sou meu próprio senhor e decido politicamente meu
destino podem parecer quase iguais, mas as noções destas liberdades
desenvolveram-se historicamente em direções diferentes.
Com relação à liberdade positiva, em Kant, por exemplo, ser
senhor de si mesmo incluía estar no controle de suas paixões; aprender a não
desejar o que não se poderia realizar. “As noções de liberdade como resistência
(ou fuga) ao desejo não realizável e como independência da esfera da
causalidade têm desempenhado um papel central tanto na política como na ética”.
Kant vê no paternalismo, inclusive, o piores dos males, pois
trata os homens como se não fossem livres, como se não fossem senhores de si,
mas um “material humano” para que o “reformador benévolo os modele” segundo sua
vontade – e não a deles.
Para Kant, Hegel e outros autores da época, os homens
seriam, assim, governados pela razão. Deveriam agir e não sofrer ação: autonomia,
não heteronomia. “O método verdadeiro de alcançar a liberdade, dizem é pelo uso
da razão crítica”.
Mas para Berlin uma
idéia de liberdade que inclui o controle, supressão das paixões e “obediência”,
em conseqüência, pode ser muito perigosa. Pode convencer as pessoas daquilo que
não partiu verdadeiramente de sua “razão”. O que é bom para um pode não ser
para outro e não estamos todos indo rumo ao mesmo fim.
Ele é, assim, contra
a racionalização da política, pois não acredita que a razão pode conciliar os
valores em conflito no homem, que é possível que se crie uma sociedade
perfeitamente harmoniosa, como se os homens em todos os tempos e países exigissem
a mesma satisfação inalterável das mesmas necessidades básicas inalteráveis e que
pelo acesso à razão seria possível “ordenar” a sociedade para um fim comum.
Como então evitar o conflito entre as duas liberdades,
quando não é possível reivindicar validade eterna para os fins escolhidos? Pois
é “demonstradamente falsa a idéia de que é possível encontrar alguma fórmula
única pela qual todos os diversos fins humanos possam ser harmoniosamente realizados”.
O argumento central de Berlin se fundamenta na idéia de que
a liberdade dos antigos também é a liberdade dos modernos e que, no conflito
inevitável entre fins que poder ser considerados igualmente importantes e
dignos de se realizar, a liberdade negativa tem prioridade. Afirma que em toda
interpretação da palavra “liberdade” há um mínimo de liberdade “negativa”, uma
área na qual o agente individual não deve ser frustrado. Mill e Constant, diz
ele, querem mais que o mínimo.
Para Berlin ninguém expressou melhor o conflito entre os
dois tipos de liberdade (ou com mais clareza) do que Benjamin Constant. Ele
mostrou que transferir o poder de um grupo (político – liberdade positiva) para
outro não aumenta a liberdade (dos indivíduos – liberdade negativa). Ele via
que o problema principal para os que desejam liberdade individual não é quem
obtém a autoridade, mas quanto de autoridade se coloca em qualquer grupo de
poder. Constant via que a liberdade era ameaçada pela simples existência da
autoridade absoluta como tal e com isso criticava veemente Rousseau.
Percebe-se então o conflito entre direito político e individual.
Entre os que acreditam que o Estado deve ter grande poder e os que acreditam
que seu poder deve ser mínimo. “Talvez o principal valor dos direitos políticos
– positivos – de participar do governo seja, para os liberais, o de ser um meio
de proteger aquilo que eles consideram um valor supremo, a saber, a liberdade
individual – negativa”, diz Berlin.
Ele conclui afirmando que o pluralismo, com a dose de
liberdade “negativa” que acarreta, lhe parece um ideal mais verdadeiro e mais
humano do que o dos que buscam nas grandes estruturas o ideal autodomínio
“positivo” por parte de classes, povos ou de toda a humanidade – com o que
estou de acordo.
É o desenvolvimento da capacidade de ver no pluralismo e na
diferença o caminho para uma sociedade melhor que me parece a grande missão
destas e das próximas gerações. É o contato com o máximo de culturas, como diz
Levi Strauss que possibilita as combinações favoráveis que levam o mundo a se
desenvolver ruma a algum “progresso”. E concordando com Berlin quando diz que “as
concepções de liberdade derivam de visões do que constituem um eu, uma pessoa
um homem” e que, desta maneira,“uma manipulação perfeita da definição do homem
e da liberdade é capaz de fazer com que ela signifique qualquer coisa que o
manipulador deseje”, sugiro que comecemos por perguntar quem somos?Em que
medida somos, de fato, iguais? Em que medida precisamos ser iguais para que
convivamos em paz? Em que medida somos livres? Ou tanto a prisão quanto a
liberdade são criações da própria vida em sociedade? A fim de que não sejamos persuadidos e
enganados, alcançando verdadeiramente a liberdade “positiva” de sermos senhores
do nosso próprio destino; ou para evitar que caiamos no erro e na vaidade de
julgar saber o que é melhor para o mundo, quando mal sabemos quem somos, quando
não ouvimos o que outros pensam, desejam e sentem – e o que desejam para si
mesmos.
Para esta reflexão, o
texto que pretendi sintetizar é bastante pertinente, além de demonstrar a
lucidez admirável do autor.
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