Cap 17. Algumas formas primitivas de classificação - Durkheim e Mauss


Cap 17. Algumas formas primitivas de classificação -

Conhecido como o pai da sociologia, Émile Durkheim tinha como preocupação criar uma nova ciência, aos moldes das ciências naturais, mas com um método específico que respeitasse as peculiaridades de seu objeto. Bastante influenciado pelo positivismo comteano, o autor acreditava ser possível apreender os fenômenos sociais de maneira objetiva, através de dados empíricos. Para isso teve como pretensão estudar a sociedade externamente, como “coisa”, pois via na sociedade uma entidade sui generis, que possui sua própria natureza, não se tratando de uma mera soma de indivíduos. Ele estudou o social pelo social, isto é, tentou entender a sociedade partindo da própria sociedade, além de, partindo do mais simples, explicar os fenômenos mais complexos. Em sua obra Formas Elementares da Vida Religiosa, por exemplo, ele busca entender no totemismo, a forma religiosa mais antiga e simples, as causas possíveis dos fenômenos que ocorrem na sociedade, pois entende que as manifestações religiosas são também as primeiras manifestações sociais e que nas sociedades mais simples, onde predomina a solidariedade mecânica, não tendo havido uma complexificação e multiplicação das representações, é possível perceber com mais clareza a “verdade” dos objetos estudados. A religião teria sido assim a primeira forma de representação social, por meio da qual o homem reflete sobre a sociedade, dando luz à filosofia, que por sua vez, deu a luz à ciência.
“... A sociologia parece ser chamada a abrir um novo caminho para a ciência do homem. Até aqui, estávamos colocados diante desta alternativa: ou explicar as faculdades superiores e específicas do homem, reduzindo-as às formas inferiores do ser, a razão dos sentidos, o espírito à matéria, o que levaria a negar sua especificidade; ou ligá-las a qualquer realidade supra-experimental que se postulasse, mas de que nenhuma observação poderia estabelecer a existência... Desde que se reconhecer que acima do indivíduo existe a sociedade, e que esta não é um ser nominal de razão, mas um sistema de forças atuantes, uma nova maneira de explicar o homem se tornou possível.” (p.182)
No capítulo Formas Primitivas de Classificação é possível perceber como este método é aplicado no estudo da sociedade. Durkheim, ao comparar a organização das sociedades totêmicas em que, “a classificação das coisas reproduz a classificação dos homens” (p. 184) ele percebe que existe uma organização totêmica, um sistema de classificação, uma lógica comum a diversos clãs de diferentes lugares da Austrália. Mesmo quando isto não é aparente - pois as mudanças na estrutura social alteram o funcionamento destes sistemas - isto não é capaz de tornar estes traços comuns irreconhecíveis, acreditava o autor.
O que caracteriza as referidas classificações é que as idéias estão nelas organizadas de acordo com o modelo fornecido pela sociedade. Mas desde que esta organização da mentalidade coletiva exista, ela é suscetível de reagir à sua causa e de contribuir para modificá-la.” (p. 189)
Os clãs que antes estavam tão ligados pelos costumes e pelas representações e a organização primitiva dos clãs totêmicos australianos foram, ao longo do tempo, sofrendo fragmentações e dando origem a novos clãs e a novas formas de classificação; os clãs multiplicados, em princípio possuíam uma relação hierárquica, mas ao passar do tempo foram se “autonomizando”, mantendo parte das características de sua origem e desenvolvendo outras novas. Há então, conforme os totens geram subtotens, que se tornam novos totens e assim sucessivamente; uma complexificação das representações.
“... As coisas estão presas a quadros determinados, mas estes possuem já qualquer coisa de mais artificial e de menos consistente, uma vez que cada um deles é formado de duas secções que se prendem a suas fatrias diferentes... A causa deste seccionamento é a mesma nas duas sociedades, Isto é, a transformação da filiação uterina em filiação masculina. A fatria e, por conseguinte, a classe matrimonial, continuam a transmitir-se por linha materna; somente o totem é herdado do pai... A criança pertence a uma classe de fatria materna; mas possui os mesmos totens que seu pai, o qual pertence a uma classe da outra fatria.” (p. 196)
Existe então uma relação direta entre o sistema social e o sistema lógico com o qual a sociedade se pensa e se conceitua. As classificações primitivas parecem, portanto, se ligar às primeiras classificações científicas. Ainda que as segundas pareçam totalmente diferentes das primeiras, elas possuem características essenciais comuns; uma forma gera a outra e as classificações complexificadas mantêm resquícios da sua base comum. Ambas são “sistemas de noções hierarquizadas” e possuem um “fim especulativo”, como diz o autor. “As coisas não se encontram dispostas simplesmente sob a forma de grupos isolados uns dos outros, mas estes grupos mantêm uns com os outros relações definidas e seu conjunto forma um só e mesmo todo”. Seu objetivo não é, assim, tornar mais fácil a ação, mas tornar inteligíveis as próprias relações sociais existentes, dando luz a uma “primeira filosofia da natureza”, em que se ligavam as idéias, onde o conhecimento se tornava uno. (p. 197-198)
Durkheim aproveita também para fazer uma crítica à concepção de Frazer, que via nas relações lógicas entre as coisas a base das relações sociais. Para ele o que se dava era o contrário: foram as relações sociais que serviram de “protótipo” para as relações lógicas, usando termos do autor.
A sociedade não foi simplesmente um modelo de acordo com o qual o pensamento classificatório teria trabalhado; foram os próprios quadros da sociedade que serviram de quadros ao sistema. As primeiras categorias lógicas goram categorias sociais...Também as relações que unem as classes umas às outras, e não somente sua forma exterior, são de origem social. Foi porque os grupos humanos se continham uns nos outros, o subclã no clã, e clã na fatria, a fatria na tribo, que os grupos de coisas se dispuseram sobre a mesma ordem. Sua extensão regularmente decrescente à medida que se passava do gênero à espécie, da espécie à variedade, etc., vem de extensão igualmente decrescente que apresenta, as divisões sociais à medida que nos afastamos das mais vastas e mais antigas para nos aproximarmos das mais recentes e mais derivadas. E se a totalidade das coisas é concebida como um sistema único é porque a sociedade, ela própria, é concebida como tal. Ela forma um todo ao qual tudo se liga. Assim a hierarquia lógica não é senão um outro aspecto da hierarquia social... (p. 198-199)
Os laços que unem os indivíduos também são sociais. Os primeiros laços que unem os homens são os familiares, de parentesco. Quando os clãs ainda eram próximos e compartilhavam um sentimento familiar, as relações lógicas eram, de certa maneira, relações domésticas e com subordinação econômica ou política. O autor afirma, portanto, que “os mesmos sentimentos que estão na base da organização doméstica, social, etc., presidiram também a repartição lógica das coisas”. (p. 200)
A classificação das coisas estava relacionada à representação dos afetos que acometiam os homens de determinada sociedade. As coisas representam “atitudes sentimentais”; são sagradas, profanas, puras, impuras, favoráveis ou desfavoráveis; enfim, como as coisas causam efeitos diferentes em cada sociedade, elas mudam de natureza de acordo com as sociedades em que estão inseridas; pois suas principais características exprimem o efeito que as coisas provocam na “sensibilidade social” de cada povo.  (p. 201)
Enquanto que para nós, por exemplo, o espaço se representa em partes semelhantes, para muitos povos ele se diferencia de acordo com as regiões, pois cada região possui seu valor afetivo peculiar. E este “valor emocional” desempenha um papel fundamental no processo de classificação dos povos primitivos e na forma com que as idéias se aproximam ou se distanciam. Isso, de certa forma, explica o antropocentrismo, pois o homem começou a conceber o mundo de acordo com aqueles e com aquilo que se relacionava afetivamente. Em diversos povos o centro do mundo era considerado o local onde ocupavam justamente porque ali era o “centro de sua vida moral”.
Durkheim entende então que não é o indivíduo o centro dos primeiros sistemas da natureza, mas a própria sociedade; “é ela que se objetiva e não o homem”, em conceitos como espaço, tempo, religião, etc. “Uma classificação lógica é uma classificação de conceitos”. (p. 202) Além disso, a coerção que o indivíduo sofre da sociedade não permite que ele julgue com precisão as noções que a sociedade elaborou sem a sua participação.
Ele conclui o capítulo afirmando que a história da classificação científica é a própria história do enfraquecimento da afetividade social que, em etapas, abriu caminhos para a livre reflexão dos agentes individuais. E ainda assim sobrevivem influências longínquas, pois resultaram em formas de classificação, em hábitos mentais que agem diretamente na nossa concepção de mundo, em relação aos seres e aos fatos “sob a forma de grupos coordenados e subordinados uns aos outros”. Durkheim ainda, otimista em relação a seu método, acredita ser possível responder a todas as questões sobre “a maneira como se formam as idéias de causa, de substancia, as diferentes formas de raciocínio, etc”; contanto que fossem colocadas em termos sociológicos, isto é, objetivos: que estudassem os fenômenos sociais externamente, empiricamente, através das próprias manifestações sociais. (p. 203)
Motivando uma provocação do próprio Durkheim em sua obra Regras do Método Sociológico, se tivermos dúvidas em relação à força coercitiva e condicionadora da sociedade, basta que tentemos não seguir seu conjunto de regras e valores para senti-la se impor em forma de sanções, punições e olhares atravessados. De qualquer maneira, as coisas mudam a todo momento e parece impossível mensurar em que medida essa força se enfraqueceu, dando lugar a ação individual, pois sequer se soube um dia em que medida ela foi mais ou menos forte dentro dos homens. Me parece, portanto, que é sempre necessária uma “lapidação” dos métodos, o que sugere também Durkheim em relação a sua própria metodologia no livro citado. Hoje, e cada dia mais, é necessário tentar entender o mundo através da ação de seres pensantes, sujeitos de si, até porque me parece que é isso que desejamos que eles sejam. Não que grande parte das pessoas ainda pareça não ser capaz de, dentro do possível, ser senhor de si mesmos, certamente uma grande parte de homens foi incapaz de ignorar o conhecimento e enfrentam a dura tarefa da desconstrução e reconstrução constante que é a vida em sociedade, e estas pessoas precisam ser mais levadas em conta nas novas metodologias. Entre mortos e feridos foi isso que nos restou como consolo, a possibilidade de enxergarmos a coerção, para bem ou para mal, que a sociedade exerce sobre nós; a contradição de classe, o contraste gritante entre o luxo e a miséria... Enfim, esta não é uma discussão nova nas ciências sócias; existe uma lacuna na forma durkheimiana - e mesmo na marxista - de compreender e explicar a vida social; não só porque há sempre lacunas em qualquer forma de pensamento, mas porque o mundo em que eles escreveram suas obras já não existe mais.

- Resenha do Capítulo 17 do livro Emile Durkheim – Sociologia – 9ª edição – Organizador José Alberto Rodrigues – Editora Ática

Mariana Donati Valle dos Santos 


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