Resenha - “O partido como parte”, in: SARTORI, G. (1976). Partidos e sistemas partidários.
Resenhado por Mariana Donati Valle
O cientista político italiano Giovanni Sartori, no capítulo
intitulado “O partido como parte” da obra Partidos
e Sistemas Partidários (1976), demonstra historicamente como os partidos
foram uma consequência não planejada de um processo político complexo que
culminou no sistema partidário como o conhecemos hoje. Para isso mostra de que
forma o conceito de partido foi pouco a pouco se distanciando da palavra sempre
pejorativa facção, ao passo que um processo paralelo ocorria de maneira mais
lenta e complicada da intolerância para a tolerância, desta para a dissensão e
da dissensão para uma visão positiva da diversidade. (nota 44)
Sartori faz uma distinção etimológica inicial entre as
palavras facção: palavra latina que possui relação com a idéia de “fazer
danoso”, de perturbação à ordem; e partido: palavra também latina, do verbo
partir, dividir. A palavra “partido” também passa a exprimir a idéia de “parte”,
e esta carregava também o sentido do verbo partilhar, participar. Quando parte
se torna partido, carrega, então, estas duas conotações: de divisão e de
partilha. (p. 24)
Segundo o autor, à exceção do filósofo e político Edmund
Burke, “nenhum autor do século XVIII realmente distinguiu os conceitos de
facção e partido”. Mas além de Burke, Bolingbroke e Hume também são citados
como autores que contribuíram com para algumas das primeiras distinções (talvez
as mais importantes) entre as palavras – mesmo que fossem mais ou menos contra
a idéia de divisões e, portanto, partidos.
Bolingbroke considerava que o partido era um mal político,
sendo a facção “o pior de todos os partidos”. Fez assim uma distinção entre as
duas palavras. Em sua Dissertação sobre
os partidos ele os colocou em primeiro plano, forçando os homens de seu
tempo e das gerações futuras a enfrentar esta questão.
Hume estava mais ou menos entre Burke e Bolingbroke.
Considerava que “abolir todas as distinções de partido pode não ser praticável,
talvez nem desejável num governo livre”. Mas partilha de um ideal semelhante ao
de Bolingbroke: “o fim das distinções artificiais e odiosas” (p. 27). Ele os
considerava uma conseqüência desagradável, mas também como medida salutar, que
levaria de volta à harmonia e unidade. Sua principal contribuição foi a
tipologia desenhada em 1742, distinguindo os tipos de facções entre pessoais,
próprias das pequenas repúblicas e, geralmente, do passado; e facções reais,
próprias do mundo moderno – é nestas que Hume concentra sua análise.
As facções reais podem ser de interesse, princípio e
afeição. As primeiras são as mais justificáveis, as de princípio (especulativo
abstrato) só são vistas na modernidade e “talvez sejam o fenômeno mais
extraordinário e inexplicável já surgido nas questões humanas”, escreveu Hume
(p.28). Há então, implicitamente, uma distinção entre princípios políticos e
religiosos. Ele contribuiu, assim, para uma definição mais generosa de partido
“quando mostrou que as facções baseadas em princípios eram uma nova entidade na
cena política e que os partidos políticos deveriam ser distinguidos dos
princípios religiosos” (p. 29).
É importante lembrar que a diversidade de opiniões estava muito
longe de ser considerada como fundamental à democracia até o século XVIII, pois
seus “postulados originais eram a unidade e a unanimidade”. (p 43)
Burke foi quem deu um caráter positivo à idéia de partido,
sendo o “ponto crucial na história intelectual” do espírito do partido, um
instrumento do governo livre, que ultrapassa as facções por estar fundamentado
em interesses e princípios comuns – não somente em afetos e interesses
individuais ou de um grupo. Para ele somente a ligação entre os homens permite
que eles se defendam e se previnam dos abusos que podem vir a sofrer.
Mas ele estava relativamente sozinho nesta defesa. Os
franceses eram unânimes na condenação dos partidos – pela forte influência do
pensamento de Rousseau, da idéia de Razão e da filosofia individualista. Nos
Estados Unidos, Madison e Hamilton também eram contra os partidos; Jefferson os
concebia da mesma maneira que Bolingbroke. Apenas 50 anos depois de seu Discurso é que os partidos conseguiram
superar as facções e passaram a existir nos países de língua inglesa. (p. 33)
Somente quando o horror da desunião foi superado, quando
outro tipo de mundo foi considerado possível, um mundo plural, é que os
partidos puderam nascer, pois eles “e o pluralismo nascem do mesmo sistema de
crenças e do mesmo ato de fé”. (p 34)
O pluralismo partidário foi, segundo o autor, uma exportação
dos países – sobretudo protestantes – em que o pluralismo (conseqüência e
superação das guerras e perseguições religiosas) foi primeiramente cultivado
(p.38). Foi apenas com a separação do bem-estar público do bem-estar privado,
que se pôde alterar as regras do jogo e do poder político. O pluralismo se
refere a associações sempre voluntárias, nunca impostas; e fundamentadas em
“afiliações múltiplas” – como o partido.
Para Sartori, o pluralismo é algo que “coincide com a
divisão do trabalho e a diferenciação estrutural, que são, por sua vez, as
companheiras inseparáveis da modernização” (p.35). E mesmo que utilizemos este
termo para descrever e não para dizer como a sociedade deve ser, devemos
lembrar que “ele indica estruturas societais e políticas que nascem de uma
orientação de valor, de uma crença de valor” (p36). Isso também significa dizer
que a existência do pluralismo também depende da crença que depositamos nele
O pluralismo político se refere à uma “diversificação do
poder”, uma multiplicidade de grupos independentes e que se excluem. Ele relaciona-se de maneira muito particular
com a regra da maioria: ainda que possua suas limitações, ele continua sendo a
maneira mais eficiente de evitar que os integrantes da maioria desrespeitem os
direitos das minorias. O pluralismo partidário significa que existem partidos
no plural, mas que estes partidos são consequência do pluralismo (p.39).
Depois de sua ênfase no curso das idéias, o autor nos lembra
que o surgimento dos partidos não foi algo pensado ou planejado; as funções do
partido, sua posição ou peso no jogo político não foi algo predefinido. Os partidos
foram uma conseqüência de diversas vicissitudes históricas.
No século XVIII os ingleses colocaram o governo responsável
em prática – não o governo partidário como alguns podem dizer. Este antecede o
governo partidário como o entendemos; e a distância de partido no governo e
governo partidário é muito longa, como diz o autor na página 40 do texto em
questão.
O governo responsável era constituído somente da
responsabilidade dos ministros para com o parlamento. Era um sistema que se
baseava no apoio parlamentar ao governo. Este governo responsável ante as
câmaras também se torna, longo prazo, um governo sensível, que numa explicação
ampla, se refere àquele atento à voz do povo e por ela influenciado (p. 41).
Há também uma passagem do partido aristocrático (de acordo
com a terminologia de Tocqueville), parlamentar, que se encontrava fechado aos
interesses do grupo; para o partido eleitoral, que vai além dos interesses do
grupo, estando assim mais próximo do que conhecemos hoje (p. 41. Quadro1)
A concorrência entre o parlamento e o governo (que não sendo
capaz de lidar com o parlamento de maneira irreversível, recorre ao voto – o
que também faz o parlamento) envolve cada vez mais o eleitorado. Com a
crescente necessidade de votos, o partido aristocrático precisou ampliar seu
alcance e desenvolver um meio de coletar votos – um partido eleitoral.
Assim, o partido se firma na cena política e o governo
responsável vai se tornando aos poucos governo sensível, que deve ser flexível
às exigências do eleitorado. Mas o partido dificilmente conseguirá atender às
reivindicações se não tiverem poder para governar. Então se faz necessário,
finalmente, o governo partidário. O sistema partidário surge, portanto, como
uma exigência estrutural do sistema político. Eles são algo novo, que não pode
ser colocado em comparação com os “partidos” da Antiguidade como faz Weber,
pois se trata de algo próprio da modernidade (p.44-45).
No caminho final do capítulo, o autor define três características
principais dos partidos modernos – como entendidos no texto – baseados mais em
práticas, em acontecimentos históricos, do que em teorias. Em primeiro lugar
eles não são facções. “Os partidos ligam o povo a um governo”. Possuem uma
função no todo, o que não acontece com as facções. Em segundo, um partido é
parte de um todo, tem em vista o interesse geral, governa em função do todo. Em
terceiro, é um canal de expressão, um meio de representação do povo, que
expressa suas reivindicações. E eles assim se tornam em conjunto com o processo
de democratização da política. Citando Key, assim como o autor, “os partidos
políticos são instituições básicas para a tradução das preferências da massa em
políticas públicas. (p. 46-49)
Quanto à possível objeção de que os partidos podem manipular
a opinião pública de forma negativa, o autor responde que “um impacto
manipulador multicentrado e entrecruzado, difere de um tipo de manipulação
unicentrada e auto-reforçada, indicando com isso que a verdadeira manipulação,
ou a manipulação repressiva, surge precisamente quando o pluralismo
desaparece”. (p. 50)
Sartori conclui definindo um sistema partidário como um
sistema pluralista de partes que expressa vigorosamente a opinião dos
governados, ainda que assuma como incompleta a afirmação: é a premissa que dá
perspectiva e proporção às muitas coisas que ficam por ser ditas.
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