As formas elementares da vida religiosa - Durkheim

Na obra Formas Elementares da Vida Religiosa, o sociólogo Émile Durkheim busca entender e explicar a realidade atual e parte das formas religiosas mais antigas, das tribos totêmicas australianas, pois entende que elas são as mais adequadas para fazer entender a “natureza religiosa” do homem; um “aspecto essencial e permanente da humanidade”. (p. IV)
Durkheim considera que não existem religiões falsas ou inferiores. Todas elas possuem a mesma função e correspondem, mesmo que de forma diversa à própria existência social dos homens. Quer examinar, portanto, o que é a religião de uma maneira geral, não de maneira dialética, sem limitar-se a analisar a idéia que fazemos da religião e sem comparar as religiões já complexificadas, buscando representações fundamentais; pois é muito difícil distinguir nestas religiões o “secundário do principal e o essencial do acessório”. (p. X)
Em sociedades em que há menor desenvolvimento de reflexões individuais, menor quantidade de pessoas, isto é, prevalência da solidariedade mecânica relativa à consciência coletiva; há também mais regularidade nas práticas sociais, certa uniformidade no comportamento social dos indivíduos. Tudo é uniforme e simples, assim como as relações entre os fatos. “Tudo é reduzido ao indispensável”, e o que é indispensável é também essencial, justamente o que autor pretende encontrar.
O autor defende que a realidade concreta – objetiva – que se pretende descobrir só se pode encontrar através da observação histórica e etnográfica. Para entender a realidade concreta da prática religiosa entre os homens Durkheim busca meios para “discernir as causas, sempre presentes, de que dependem as formas mais essenciais do pensamento e da prática religiosa”. (p.XIV)
II
As primeiras representações produzidas pelo homem são, então, de origem religiosa. Foi através destas representações que os homens refletiram sobre si e sobre o mundo. Já na introdução, o autor apresenta a conclusão de sua obra: “As representações religiosas são representações coletivas que exprimem realidades coletivas”. Durkheim entende que as categorias do entendimento, a que ele dedica atenção especial, são encontradas já na análise das crenças religiosas primitivas, e, sendo assim, “devem participar da natureza comum a todos os fatos religiosos”, concluindo que estas próprias categorias devem ser coisas sociais, resultado do pensamento coletivo. (p. XVI) A noção de tempo e espaço, por exemplo, que alguns entendem como algo dado na natureza, apenas representa a forma de organização e pensamento da própria sociedade. Mesmo a individualidade, que nos parece tão concreta, também é considerada como uma idéia que depende de fatores históricos e, assim, sociais.
Durkheim transfere para a nascente sociologia o estudo das categorias do entendimento, que são os quadros conceituais através dos quais se pode pensar a realidade (como quantidade, qualidade, substância, gênero, etc.).O autor buscava a origem lógica do pensamento, partindo de sua forma mais simples. Para a Filosofia a classificação das coisas, por exemplo, é intrínseca às próprias coisas. Para a Psicologia, ela é resultado da atividade psíquica do indivíduo; para Durkheim elas são representações sociais; pois o homem não poderia criar por si só, através de uma “investigação interna” ou da impressão que causam as coisas, os conceitos e categorias que estão na vida social, nas relações e nos esquemas da própria sociedade e que não são intrínsecas nem às coisas nem aos indivíduos; são representações sociais, que diferem de acordo com cada sociedade. Elas “jamais são fixadas de uma forma definida; elas se fazem, se desfazem, se refazem, permanecem; mudam conforme os lugares e as épocas”. (p. XXII)
Durkheim mantém a proposição fundamental do apriorismo de que “o conhecimento é formado de duas espécies de elementos irredutíveis um ao outro e como que de duas camadas distintas e superpostas”, ainda que lhe faça diversas críticas, pois para ele o homem é duplo: um individual e limitado a ele mesmo; o outro um ser social, que “representa em nós a mais elevada realidade, na ordem intelectual e moral, que podemos conhecer pela observação, quero dizer, a sociedade”, diz o autor na página XXIII da introdução da obra citada. É por isso que o homem ultrapassa a experiência e adquire conhecimentos, não por uma razão que reside fora do homem e se manifesta através dele – fazendo uma crítica aos racionalistas e empiristas de sua época.  Em sociedade o homem, ao pensar e ao agir, naturalmente ultrapassa a si mesmo, pois a sociedade com sua natureza sui generis lhe fornece diversos conhecimentos que “instruem” o seu pensamento e sua ação em sociedade.
A autoridade não é, portanto, a razão divina, externa à sociedade; a autoridade é a própria sociedade. É ela que comunica maneiras de pensar que “são como as condições indispensáveis de toda ação comum, ”pois se não houvesse uma noção comum de tempo, espaço, numero; seria muito mais difícil constituir sociedades e “acumular” conhecimentos. (p. XXV) Mas a sociedade, usando termos do autor, não é um império dentro de um império, ela é a manifestação mais elevada da própria natureza. O social é um reino natural complexificado.
As categorias do pensamento, que foram pensadas pelos empiristas como fatos primeiros e que não eram passíveis de análise, para Durkheim não eram meras noções que qualquer um pode adquirir de sua experiência pessoal; elas são “como hábeis instrumentos de pensamento, que os grupos humanos laboriosamente forjam ao longo dos séculos e nos quais acumulam o melhor de seu capital intelectual”. (p. XXVII)
Conclusão
Na conclusão da obra citada, Durkheim defende que a importância destas representações coletivas, se estende a todas as religiões. Em qualquer uma delas os cultos são maneiras de criação e recriação constante das próprias práticas sociais. Os cultos garantem que homens atuem juntos, pois é pela ação comum que a sociedade toma consciência de si e se afirma; ela é, acima de tudo, uma cooperação ativa”. (p. 461)
As regras morais e legais não se distinguem das prescrições rituais e quase todas as instituições sociais, para o autor, nasceram da religião. Ela é a imagem da própria sociedade e reflete até mesmo seus aspectos mais “vulgares e repulsivos”. (p. 464) As forças religiosas são, na verdade, forças morais.
Mas a religião, ainda que mostre traços da própria realidade sociais, também possui um caráter idealista. Para Durkheim apenas o homem possui a faculdade de conceber o ideal e ampliar o real. O sagrado é o que o homem acrescenta ao real (o real é o profano). O sagrado, em certo sentido existe apenas no pensamento dos homens, mas atribui-se a ele uma “espécie de dignidade maior”. É um mundo ideal. (p. 466) E a sociedade ideal faz parte da própria sociedade, não é exterior a ela. Foi a sociedade que ensinou o homem a idealizar. Ao “assimilar os ideais elaborados pela sociedade, ele se tornou capaz de conceber o ideal”.  E à medida que a personalidade individual se desenvolve, sobretudo em sociedade complexificadas, o ideal pessoal se separa do ideal social. Então ainda que a religião pareça ser algo que parte do interior dos homens, é na sociedade que ela se fundamenta.
Mas a religião não é apenas um sistema de práticas, diz Durkheim; é também um sistema de idéias que tem a função de exprimir o mundo do homem. Foi a primeira maneira de se “fazer ciência”. A ciência tende a substituir sua geradora em tudo o que está relacionado a intelectualidade e cognição. (p. 474-476) A religião vai perdendo sua hegemonia.
A ciência se baseia em conceitos e estes se opõem às representações sensíveis; ele é uma representação impessoal em essência e é por meio deles que as inteligências humanas se comunicam. (p. 480-481) Os conceitos são, por tanto, representações coletivas, comuns a todo um grupo social; e eles se objetivam na realidade.
O conceito de totalidade, por exemplo, é para Durkheim uma forma abstrata de falar da própria sociedade. A sociedade como algo sui generis é também uma individualidade, que possui suas próprias características e, portanto, também particulariza o que pensa. Cada sociedade é uma sociedade.
O pensamento lógico tende a se separar dos elementos subjetivos e com isso a organização social vai se diferenciando e tornando-se autônoma (p. 495). Ainda que pareçam conflitantes, a religião a moral e a ciência são todas manifestações, em complexidades diferentes, da própria sociedade e da maneira como ela se organiza e se pensa. É através dela que o indivíduo eleva-se acima de si mesmo.

Durkheim conclui com entusiasmo que “a sociedade é o maior feixe de forças físicas e morais cujo espetáculo a natureza nos oferece”. E considera que se a reconhecemos acima dos indivíduos, como um sistema de forças atuantes, é possível explicar o homem de uma nova maneira. (p. 498) De maneira objetiva, partindo desta força decisiva que a sociedade. 

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