Qual o caminho para a redução das desigualdades?

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As relações sociais no Brasil e as instituições, como em grande parte do mundo, com suas peculiaridades, são infestadas de racismo, preconceitos e discriminações. As políticas afirmativas têm permitido que negros, pessoas de baixa renda e deficientes tenham mais condições de usufruir dos direitos previstos na Constituição, mas não apenas estão longe de resolver o problema, como também sofrem ataques, seja pela ignorância, seja pelo próprio racismo que norteia a visão sobre as coisas, de maneira que estão sempre em risco de deslegitimação.

 Além do racismo há o preconceito e a desigualdade de gênero, que coloca a mulher sempre nas baixas escalas da hierarquia social. Combinando de maneira abjeta racismo e machismo, a mulher negra é colocada no último ponto desta escala.

 Essa hierarquização acontece de maneira global desde o processo de colonização que abre as portas da modernidade, racializando os grupos étnicos de maneira que não ocorria até a “descoberta” da América. Como explica Anibal Quijano, a independência dos Estados-nação não superou as relações hierárquicas existentes entre colônia e metrópole. Através do conceito de “colonialidade do poder” explica como, na verdade, a população mundial é classificada de acordo com a “noção de raça, que tem origem no caráter colonial, mas já provou ser mais duradoura e estável que o colonialismo histórico, em cuja matriz foi estabelecida” (Quijano, 2005).

Este poder estabelecido faz de tudo para ocultar o fato de que o desenvolvimento e o “progresso” europeu se deu graças à exploração brutal das colônias e dos colonizados, assim como se esforça dia após dia para ocultar a continuidade desta exploração, que acontece por trás dos ideais iluministas de liberdade e igualdade universais. Essa hierarquização também ocorre, mais ou menos, de acordo com os gêneros. Os negros, indígenas e seus descendentes – identificados por seus fenótipos – e as mulheres têm sempre dificuldade de acesso aos cargos e posições sociais no topo da escala hierárquica.

 Além disso, a “colonialidade do saber” também garante que apenas a razão, o conhecimento europeu seja considerado verdade, impedindo que saberes locais possam ser utilizados para compreender suas realidades locais, tão diversas e particulares.

No Brasil, por exemplo, estamos sempre estudando, pesquisando, refletindo e produzindo de acordo com saberes eurocêntricos, que são incapazes de explicar nossa realidade e de contribuir para soluções viáveis, que correspondam à complexidade dos nossos problemas e dos processos internos que compõem nossa história. Em geral, optamos, ou somos induzidos fortemente a pensar nossa realidade pela perspectiva do homem branco europeu e aceitamos seus movimentos de ocultação. Buscando unidade nacional e um comportamento social que, com uma investigação honesta da história e do cotidiano do país, parece uma piada - de muito mau gosto.

 Um dos grandes equívocos de nossa história e que contribui para que não possamos combater a colonialidade do poder e do saber é o mito da democracia racial – que vai ao encontro da racionalidade ocidental e de sua ideia de civilização e progresso – desenvolvido por Gilberto Freyre, que ignora as injustiças, os preconceitos e os absurdos sobre os quais o Brasil foi construído, supondo uma relação positiva entre as etnias branca, negra e indígena. É como se o embranquecimento de negros e indígenas na base do estupro, do chicote e da aculturação fosse um favor, afinal, essas populações precisavam avançar na escala da civilização.

 Como o mito da democracia racial no Brasil ainda não foi superado, para muitos, as políticas de ação afirmativa, sobretudo as de cotas, são consideradas uma manifestação do racismo, quando oferece “privilégios” aos negros em detrimento das pessoas brancas de baixa renda. Percebemos neste argumento a ignorância em relação a essas políticas, que dedicam grande parte de suas ações justamente à população de baixa renda, de qualquer etnia. Infelizmente este argumento não se mantém apenas pela ignorância. Ele é muitas vezes a máscara sobre a face racista do homem e da mulher média brasileira que não suporta conviver com diferença e com a grandeza daqueles que fazem de tudo para apequenar.

 Este argumento caminha junto com a ideia de que se os negros, negras, pobres não entram na universidade, não acessam determinados cargos e posições sociais simplesmente pelo fato de que não se esforçam o suficiente e que beneficiá-los de alguma maneira seria privilegiá-los. Eu tenho dificuldade de rebater estes argumentos, porque eles simplesmente não fazem o menor sentido e autores brilhantes já deram explicações suficientes sobre isso, como Kabengele Munanga em seu artigo “Porque ensinar a História da África e do negro no Brasil hoje?”, por exemplo. Neste artigo o autor argumenta de maneira bastante coerente como não faz sentido enfatizarmos a ideia de igualdade, quando na verdade o nosso país, assim como o mundo, caminha cada vez mais para a multiculturalidade e não para a homogeneidade.

Assim, ao contrário do apagamento das diferenças, o caminho para uma sociedade mais justa passa, na verdade, pela valorização das culturas, sobretudo das que foram tantas vezes ocultadas da história nacional, como se elas não fossem igualmente importantes para a compreensão do que somos hoje e das riquezas que possuímos.

 Outro ponto importante de sua explicação é o fato de que durante muito tempo, seguindo as ideias hegelianas, a África era considerada um continente sem história, já que os homens e mulheres que ali viviam estavam na escala mais baixa da evolução, vivendo praticamente no estado de natureza. Felizmente essa ideia e essa maneira de fazer história foi superada e a África é hoje situada na origem da humanidade. Entretanto, no Brasil e no mundo, a abolição da escravatura e a compreensão da África e dos africanos como agentes históricos dignos de direitos não representa uma ruptura, pois não diminuiu desigualdades, nem combateu o racismo institucional, mantendo a relação mestre-escravo, que se tornou relação branco-negro, ambas hierarquizadas.

 É preciso sempre lembrar, e mais que isso, sublinhar, o fato de as colônias americanas foram exploradas através da escravização e sujeição dos povos africanos e indígenas e não é possível tornar nosso país mais justo – e inclusive desenvolvido economicamente – sem reconhecer o dever moral de reparar os males que isto causou. Como salientou Frantz Fanon, em Os condenados da Terra, os brancos não têm que assumir a culpa por ações de seus antepassados, mas têm a responsabilidade moral e política de combater o racismo que permeia a estrutura social. O que me parece é que grande parte das pessoas do país, seja por que foram apequenadas, seja por pequenez deliberada, não é muito chegada a responsabilidades.

 Podemos pensar, por exemplo, na quantidade de mulheres que deixam de se desenvolver intelectualmente e socialmente porque precisam assumir as responsabilidades que os homens julgam não ser deles – ou que as mulheres negras precisam assumir porque as mulheres brancas julgam não ser delas. E é muito difícil mudar esta realidade na criação dos filhos, quando competimos com uma cultura dominante que incentiva o comportamento machista, racista e a transferência de responsabilidades sem peso na consciência.

 Para a mulher sobram todos os ônus da criação de um filho, sobram mais chances para cometer erros, mais peso psicológico, mais culpas; só não sobra tempo, na verdade, falta tempo para quase tudo. Eu, como filha de minha classe e de meu tempo, tenho um filho de cada pai e perdi a conta de quantas vezes tive a ausência justificada no “tenho que trabalhar, você está carente, vai procurar um macho” ou coisas do tipo, como se minha vida se resumisse a cuidar de criança e eu também não precisasse trabalhar, como se meu tempo e meus interesses fossem menos dignos.

 É certo que o machismo é muito anterior ao advento da colonização, mas a colonialidade do poder se aproveitou da estrutura patriarcal e das discriminações de maneira brilhante.

Eu suponho que tenha tornado a vida de muitas mulheres melhor em comparação com os períodos anteriores, mas também pode ter tornado mais difícil. Como hoje somos motivadas e, claro, desejamos igualdade para ter autonomia, buscar nosso próprio sustendo e ocupação, ficamos com os encargos da maternidade, do trabalho doméstico e também do trabalho assalariado. Como diz um meme que circula pela internet “Não se fazem mais mulheres como antigamente. Homens ainda fazem, este é o problema”.

 Claro que isto está longe de abarcar a complexidade da questão. Existem mulheres, as mais pobres, as mulheres negras, que sempre precisaram fazer todas essas coisas, como há homens que fogem à regra e mulheres também, mas no geral é por aí. O mundo sempre foi e continua sendo bastante cruel com as mulheres, sobretudo com as mulheres negras.

 “Mas é justamente aquela negra anônima, habitante da periferia, nas baixadas da vida, quem sofre mais tragicamente os efeitos da terrível culpabilidade branca. Exatamente porque é ela que sobrevive na base da prestação de serviços, segurando a barra familiar praticamente sozinha. Isto porque seu homem, seus irmãos ou seus filhos são objeto de perseguição policial sistemática (esquadrões da morte, “mãos brancas estão aí matando negros à vontade; observe-se que são negros jovens, com menos de trinta anos. Por outro lado, que se veja quem é a maioria da população carcerária deste país)” (GONZALES, 1984, p.231).

 Como denuncia Mariza Corrêa em seu artigo Repensando a Família Patriarcal Brasileira, os estudos sobre a família no Brasil durante muito tempo ignoraram sua formação histórica real, construindo uma noção de família nuclear, uma estrutura familiar aburguesada, que é apenas uma das formações familiares, tanto da época colonial, quanto da atual; estes estudos dão a impressão de que havia certa estabilidade familiar, quando, na verdade, “a regra da sociedade colonial não parece ser nem a ordem nem a integração, mas seus opostos” (CORRÊA, 1981, p.14).

O mesmo acontece hoje. A maior parte das famílias no Brasil, visto que a maior parcela da população descende de homens e mulheres historicamente desfavorecidos e implicados em perigos diários, é bastante diferente das que vemos em filmes, séries e novelas. No geral, não faltam filhos sem pais, mulheres e avós como chefes de família, etc. Vale a pena lembrar que de acordo com a cultura indígena, é necessária uma aldeia inteira para se criar uma criança.

A cultura eurocêntrica estimula o individualismo e a autonomia e oculta a interdependência inevitável que faz com que a sociedade se reproduza e se desenvolva, o que contribui para que alguns fujam à sua responsabilidade e compromisso com os demais – sem culpas, sentindo-se senhores de si, quando, na verdade, dependem dos outros para praticamente tudo, pois não fazem sua própria comida, não limpam sua própria sujeira, não criam seus próprios filhos.

 Conclusão

A Constituição Federal de 1988, o Estatuto da Igualdade Racial, a Lei 10639/03, que altera a LDB 9394/96 e torna obrigatório o ensino de História e Cultura Afro-brasileira e Africana, e a Lei 11.645, de 2008 – que inclui o ensino de História e Cultura Indígena – vão ao encontro de um país vislumbrado por uma parcela significativa da população. Entretanto, esse mundo possível compete com o desejo de manutenção do poder hegemônico capitalista, que depende das desigualdades e injustiças.

Um “pedagogia descolonial” implica um trabalho imenso de auto-crítica; é necessário tornar visível e valorizar não apenas as tristezas da história dos negros, indígenas e mulheres no Brasil e no mundo, mas passar a considerar de maneira prática suas vivências, formas de saber, sua cultura, religião, abrangendo a história dos quilombos, a contribuição do Egito para a ciência e filosofia ocidentais, suas tecnologias de agricultura, sua produção cientifica, artística e política no momento atual, assim como as contribuições dos povos indígenas e das mulheres. Também é importante subverter as regras em que esperam nos encaixar, afinal, não cabemos em caixas. Esse padrão desvaloriza a linguagem própria e as questões importantes para negros, pobres, nordestinos, mulheres, imigrantes; enfim, ela exclui de acordo com uma razão que representa apenas uma parcela da população, fazendo com o que diversos temas, questões e propostas sejam excluídas dos debates político, social e científico, e que contribuiriam para uma sociedade melhor.

Como aponta Lélia Gonzales em “Racismo e Sexismo na Cultura Brasileira”, a sociedade trata a mulher negra, por exemplo, como incapaz de falar de si e de desenvolver argumentos autônomos sobre sua história e opinião sem parecer mal educada, atrevida; sem causar desconforto – e causa desconforto mesmo, porque questiona à sua maneira as “premissas supostamente inquestionáveis do nosso modo de vida”, o que os brancos supostamente benevolentes acham atrevimento e ingratidão (CASTORIADIS, Cornelius apud BAUMAN, 1999, p. 11).

 Além disso, no discurso que permeia a cultura dominante a mulher negra é sempre associada às mesmas posições sociais e desejos; estimula-se a sexualização da mulher negra, que tentando fugir das posições de exploração do serviço doméstico, por exemplo, sonha com uma vida melhor através da outra face da violência simbólica racista, que é o “endeusamento carnavalesco”, por exemplo.

“Toda jovem negra, que desfila no mais humilde bloco do mais longínquo subúrbio, sonha com a passarela da Marquês de Sapucaí. Sonha com esse sonho dourado, conto de fadas no qual “A Lua te invejando fez careta/ Porque, mulata, tu não és deste planeta”. E por que não?” (GONZALES, 1984, p.228)

 Como orienta o Parecer 003-/0024, que busca atender os propósitos expressos na Indicação CNE/CP 6/2002, assim como regulamentar a alteração trazida à LDB pela lei 10.639, é necessário construir um espaço verdadeiramente democrático de produção e divulgação de conhecimentos que combatam a ideologia do branqueamento e da meritocracia, além de realizar processos de seleção capazes de manter longe dos cargos e bens públicos aqueles que não correspondam com o que determina a Constituição e suas leis complementares.

 O problema, entretanto, está também no fato de que por trás da ideia de Estado de direito há sempre a realidade. As próprias instituições que deveriam fazer a lei ser cumprida são estruturalmente racistas, machistas e injustas, assim, o que a lei determina está sempre a mercê dos interesses das elites no poder. Por trás da razão dominante há sempre as discriminações e irracionalidades, as perversões e absurdos que acompanham o poder hegemônico, viciado na opressão e na diminuição do outro, porque esta é a condição de sua suposta superioridade.

É muito difícil combater com ideias quem nos combate com armas e celas, mas já dizia Bob Marley, “emancipem a si mesmos da prisão mental, ninguém além de nós mesmos pode libertar nossas mentes, não tenha medo da energia atômica, porque nenhum deles pode parar o tempo” (Redemption Song, álbum Uprising, 1980).

 O combate ao racismo e às desigualdades é uma luta diária, que depende cada vez mais do papel dos educadores e educadoras, que podem subverter a ordem eurocêntrica racista e machista no dia-a-dia escolar. Cabe a cada um de nós estudar, valorizar e divulgar intelectuais, cientistas, músicos, políticos; enfim, toda a infinidade de contribuições do povo negro, indígena e das mulheres, sempre invisibilizados pelo currículo escolar, pelo discurso pedagógico, pela mídia.

 “Até que os leões inventem as suas próprias histórias, os caçadores serão sempre os heróis das narrativas de caça” (Provérbio africano).

É necessário que se abra espaço, enfrentando com coragem as dificuldades que isso implica, para que essas pessoas possam atuar nessa luta, pois não é através da “benevolência” dos brancos e dos homens, que negros, negras, indígenas e mulheres pobres vão mostrar que são tão capazes de se defender quanto os pretensos salvadores da pátria. É necessário que os leões contem sua própria história e, desta maneira, mudem a lei da selva.

 Referências Bibliográficas: • QUIJANO, Anibal “Colonialidade do poder, eurocentrismo e América Latina”; Buenos Aires: CLACSO, 2005 • CORRÊA, Mariza “Repensando a família patriarcal brasileira”; São Paulo, 1981 • MUNANGA, Kabengele. Por que ensinar a história da África e do negro no Brasil de hoje? Revista do Instituto de Estudos Brasileiros, Brasil, n. 62, p. 20–31, dez. 2015. • BRASIL. Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996. Estabelece as Diretrizes e Bases da Educação Nacional. Brasília, DF, 1996 • BRASIL. Lei nº 12.288, de 20 de julho de 2010. Institui o Estatuto da Igualdade Racial; • GONZALEZ, Lélia. Racismo e sexismo na cultura brasileira. In: Revista Ciências Sociais Hoje, Anpocs, 1984, p. 223-244. • BAUMAN, Zygmunt. Globalização: as consequências humanas; tradução de Marcus Penchel. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1999.

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