A imagem do indígena ontem e hoje


Imagem da internet
Imagem da internet -  Katu Mirim
A imagem do índio no Brasil foi construída de maneira difusa e eurocêntrica e vem sendo assim reproduzida na ciência e na educação escolar até os dias atuais.
Mesmo com a Lei 11.645, de 2008, que altera a LDB 9394/96 e torna obrigatório o ensino de história e cultura afro-brasileira e indígena nas escolas, a visão sobre estes grupos continua cheia de estereótipos e preconceitos, resultando em políticas públicas pouco eficientes e relações sociais insalubres.
De acordo com o trabalho da antropóloga Manuela Carneiro da Cunha, a imagem do índio no século XVI, visível através das primeiras cartas da colônia para a metrópole e das reflexões suscitadas à época, evidencia o imaginário dos colonizadores, que apontavam para um “paraíso terreno”, “fonte da juventude”, “tesouros”, “mitos de origem medieval e clássica”. Na Carta de Pero Vaz de Caminho, de 1500, ressalta a ideia de nudez associada à de inocência, já Americo Vespucci tem uma visão menos generosa, falando da nudez, mas ressaltando a antropofagia, característica que comprovaria sua bestialidade, seu primitivismo, seu estado de barbárie.
Uns, os ibéricos em geral (missionários e moradores da colônia), descreviam a população indígena de maneira pejorativa, depreciativa, ressaltando sua falta – como faz Gandavo ao afirmar que sua língua não possuía as letras F, L e R, e que, da mesma maneira, não contavam com Fé, Lei ou Rei (P.M. Gandavo, 1980 (1570): 52), ignorando, assim, sua organização política, suas chefias, sua agricultura, etc. Outros, não ibéricos (sobretudo franceses), os descreviam de maneira elogiosa, os exaltavam, como se contassem com uma pureza superior, que evidenciava a degradação do homem europeu (como faz Montaigne), mas também ignorando sua organização social e sua forma particular de cultura. Em ambos os casos, criava-se uma imagem do índio que estava longe de corresponder à complexidade dos povos indígenas, que eram diferentes não apenas do imaginário europeu, mas bastante diferentes entre si.
Neste momento, o caminho é o catecismo e através da sujeição religiosa alcançar a sujeição política. A literatura jesuítica pedagógica busca, através do ensino religioso e da cosmologia ocidental, oferecer uma nova auto-imagem aos nativos brasileiros.
Os indígenas são, assim, inseridos na economia divina e na genealogia dos povos. Sua história é vista a partir de uma “história maior”, que é a história dos povos europeus, como se não houvesse história indígena antes da chegada dos colonizadores. Como afirmou o historiador François Furet, citado por Elza Nadai para explicar o contexto brasileiro, “a história é a árvore genealógica das nações europeias e da civilização de que são portadoras” (NADAI, 1991, p.24).
O Brasil foi então “simbolicamente criado” (CUNHA, 1992, p.9) e sua história começa em 1500. No século XIX, como o triunfo do evolucionismo, os índios são colocados no ponto mais baixo da escala da história e do desenvolvimento humano, vistos como “fósseis vivos que testemunhavam o passado das sociedades ocidentais” (CUNHA, 1992, p.11).
De acordo com as necessidades da metrópole, os indígenas são colocados, ora como tutelados, ora como aliados, ora como inimigos, ora como mão de obra ou protetores de fronteiras; sua ação no passado e no presente está sujeita aos interesses da Coroa Portuguesa. Nisto conflitavam os interesses da igreja, dos colonos, da Coroa e dos próprios indígenas, resultando em diversas relações diferentes entre brancos e indígenas.
Os “descimentos”, que agruparam índios “pacificados” de diferentes etnias num mesmo espaço, resultaram em novos grupos e novas relações. A diferenciação entre índios bravos e aliados abriu margem para que os grupos e indivíduos fizessem escolhas e atuassem de maneira deliberada, buscando fugir da morte, adquirir vantagens e até mesmo se vingar de grupos com quem possuíam rivalidades antes da chegada do homem branco. Ou seja, a “desestruturação social dos grupos indígenas e sua reestruturação nas aldeias”, que resultou das missões e dos empreendimentos da Coroa, modificou os grupos indígenas de maneira irreversível, criando vínculos entre diferentes etnias, muitas vezes rivais até o momento (POMPA, 2003, p.294).
A relação entre europeus e indígenas transformou tanto uns quanto outros, e é um grande equívoco pensar que estes encontros se resumem a dominação e sujeição. Como afirma o antropólogo Marshall Sahlins, “quando nos referimos à hegemonia sistemática do imperialismo, ignoramos as lutas dos povos por sua autonomia cultural e assim tornamo-nos cúmplices da dominação ocidental” (SAHLINS, 2004, p.79). Ou seja, pensar nos povos indígenas apenas como dominados, como peões no jogo de xadrez europeu é também colocá-los numa posição de inferioridade e incapacidade histórica – de ação humana no tempo como define Marc Bloch em sua Apologia da História (2001).
Além disso, a própria identidade indígena se construiu e se constrói no contato com o outro – e vice-versa. É no momento em que o homem branco busca a assimilação ou aculturação que a identidade dos povos indígenas se reforça e surgem novas formas de existência (e resistência), que muito provavelmente não ocorreriam na ausência de contato e da tentativa de apagamento dos elementos tradicionais que os faz sentir indígenas. A tentativa der criação de uma auto-imagem  acaba resultando sempre em algo que não é nem a permanência de traços supostamente imutáveis, que podem ser apagados, apagando consigo a própria existência indígena (num caminho essencializador), nem o resultado pretendido por aqueles que buscam a homogeneização eurocentralizadora.
Como fica claro no artigo de João Pacheco de Oliveira e sua “etnologia dos índios misturados”, os grupos indígenas não foram extintos nem totalmente aculturados, mas, pelo contrário, podem ter até crescido em número. Diante da tentativa eurocêntrica de supressão, os povos indígenas vêm buscando novas conexões com sua própria história, novos ritos e novas estratégias para manter sua identidade indígena, mostrando que o movimento da cultura e dos processos identitários é também um movimento (ato) político.
Se nos limitarmos aos métodos de análise que consideram os índios como totalmente diferentes de nós, de maneira que podemos nos distanciar completamente do “objeto”, não é possível compreender a realidade inevitável que resulta do “contato interétnico” (OLIVEIRA, 1988, p.53), sobretudo quando ainda nos colocamos acima deles numa suposta escala civilizatória e consideramos suas formas de saber, seus conhecimentos, sua epistemologia como mera crença.
A relação dos grupos indígenas como o território, por exemplo, como mostra Oliveira, diz muito sobre os desdobramentos do contato com os colonizadores e, hoje, com os não-índios. Antes da chegada dos europeus o território indígena não possuía fronteiras e era relativo à própria vivência e organização social (assim como o tempo). A nova relação com o território implicada pelo contato com a cultura europeia e sua maneira de organizar a sociedade causa transformações em diversos níveis da existência sociocultural indígena. A chamada “terriorialização”, como ocorreu no caso dos descimentos e mais recentemente com a necessidade de demarcação das terras indígenas, afetou o “funcionamento das suas instituições e a significação de suas manifestações culturais”. Esse fenômeno implica que se crie “uma nova unidade sociocultural mediante o estabelecimento de uma identidade étnica e sociocultural mediante o estabelecimento de uma identidade étnica diferenciadora”, “a constituição de mecanismos políticos especializados”, “a redefinição do controle social sobre os recursos ambientais” e “a reelaboração da cultura e da relação com o passado” (OLIVEIRA, 1988, p.55).
Este processo de territorialização impulsionou a formulação de “uma identidade própria, instituindo mecanismos de tomada de decisão e de representação, e reestruturando as suas formas culturais” (OLIVEIRA, 1988, p.56). Ou seja, a necessidade de defender sua existência e os obstáculos impostos pela colonização foram significados e resignificados de acordo com os saberes indígenas e seu mundo particular.
Para alguns pesquisadores, estes “índios misturados”, que resultam deste contato interético de mais de 500 anos, não são bons objetos de pesquisa, pois perderam grande parte dos elementos que os fazia índios. O que em geral não ocorre com a maioria dos outros povos, que quando mudam, apenas mudam, ou se aperfeiçoam, ao invés de “degenerar”, de deixarem de ser o que eram.
“Temos tido restaurantes chineses na América por mais de um século, e isso não nos tornou chineses. Pelo contrário, obrigamos os chineses a inventar o chop suey” (SAHLINS, 2004, p. 58).
Hoje, com a amplitude da tecnologia da informação, podemos ver com frequência indígenas bastante diferentes daqueles que a escola nos apresenta. Há indígenas escritores, como Daniel Munduruku; que fazem RAP, como Katú Mirim; youtubers, como Wariu; que são membros da política nacional, como Sonia Guajajara; enfim, os indígenas sempre fizeram história, continuam fazendo história e hoje podem contar sua própria história, segundo seus próprios conceitos e prioridades.
A presença destes atores na trama de que fazemos parte permite a desmistificação da vida indígena, a diminuição da insalubridade das relações interétnicas, o fortalecimento da luta política e da resistência indígena. E daí se a internet, os computadores e os celulares, e os demais instrumentos utilizados nesta batalha não são de origem indígena? O banho diário é um habito da cultura indígena e ninguém os vê recriminando a higiene do homem branco contemporâneo.
Entretanto, a outra face da estereotipação é igualmente perniciosa; ou seja, pensá-los como seres puros, como uma conexão com um passado perfeito, numa cultura sublime em total conexão e respeito pela natureza. Como podemos perceber através do livro Sapiens, de Yuval Noah Harari, onde quer que o homem tenha chegado, houve destruição da natureza e de outras espécies, houve conflito e guerra.
Se voltarmos ainda mais na história, para os seres de nossa espécie antes mesmo da revolução agrícola, veremos que os povos antigos foram uma das forças mais importantes e destrutivas que o reino animal já produziu; além disso, a mortalidade infantil era alta, períodos de privação não eram raros e os membros de um bando podiam ser bastante hostis com os desafortunados, levando-os a uma vida miseravelmente dolorida. Na verdade, devemos encarar estes povos como dotados de complexidade, não sendo nem anjos nem demônios, mas tão humanos quanto somos (HARARI, 2014, p.72). Isso se aplica também aos indígenas das Américas, que mesmo tendo construído uma cultura que lida com a natureza e com sua comunidade de maneira relativamente mais saudável, estão longe de ser infalíveis.
A história indígena, obrigatória no ensino escolar, pode e deve então ser contada de maneira mais próxima da realidade – não de acordo com a tal distância que garante uma suposta objetividade. Não falta instrumento pedagógico para isto. A rede esta repleta de registros, relatos e explicações produzidas pelos próprios atores históricos indígenas.
Ao garantir acesso às escolas e universidades através de políticas afirmativas, garantimos que os indígenas tenham voz nos locais em que em geral mais se fala de sua cultura. E a disseminação dos conhecimentos produzidos e reproduzidos no interior desta cultura certamente contribuirá para que a sociedade brasileira resgate seu potencial criador, limitado pela visão caolha do eurocentrismo e do sistema de mercado.



Referências Bibliográficas
·         CARNEIRO DA CUNHA, Manuela. Introdução a uma história indígena, in Carneiro da Cunha, Manuela (org) História dos Índios no Brasil, São Paulo, C.ia das Letras, 1992, pp. 9-24.
·         CARNEIRO DA CUNHA, Manuela. Imagens de índios do Brasil: o século XVI. Estud. av.[online]. 1990, vol.4, n.10 [cited  2013-10-24], pp. 91-110.
·         OLIVEIRA, João Pacheco de. Uma etnologia dos "índios misturados"? Situação colonial, territorialização e fluxos culturais. Mana 1998, vol.4, n.1, pp. 47-77.
·         SAHLINS, Marshall. Esperando Foucault, ainda; São Paulo: Cosac Naify, 2004.
·         Pompa, Cristina “A guerra dos Bárbaros” in Religião como Tradução. Bauru, Edusc, 2003, pp. 269-293.
·         NADAI, Elza. O ensino de história e a "pedagogia do cidadão". In: O ensino de história e a criação do fato. 3. ed [S.l: s.n.], p. 23-29. APA. Nadai, E. (1991)
·         HARARI, Yuval Noah. Sapiens: Uma breve historia da humanidade. Porto Alegre: L&PM, 2017


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