O Porquê da Autoridade Política

 “É contra a lei da natureza, seja qual for a maneira por que a definamos, uma criança mandar num velho, um imbecil conduzir um homem sábio e um punhado de gente regurgitar de superficialidade enquanto a multidão esfaimada carece do necessário.” (Rousseau, Discurso sobre a fundamento e a origem da desigualdade entre os homens. p. 243)
Por quem gostaríamos de ser conduzidos e que mandos não seriam um martírio de se cumprir neste mundo moderno de perdidos e encontrados, onde é impossível viver sozinho e onde muitos homens imbecis conduzem multidões à fome de todos os tipos?! 
É contra a natureza um imbecil conduzir um sábio? Ou a possibilidade de conduzi-lo configura algum tipo de sabedoria superior, mais útil, mais adaptada; expressão da própria natureza humana em sua essência, que faz com o homem delibere apenas em prol de si mesmo, como pensava Thomas Hobbes e tantos outros? Se for assim continuamos sempre muito próximos da nossa natureza. Nos construindo e nos destruindo comunitariamente.
Ou será isso um sintoma da degeneração que o homem sofreu em sociedade, como pensava Jean Jacques Rousseau?
Mas quem somos? Somos como animais? Conseguiríamos sobreviver sem a sociedade?
Para Hobbes, os homens no seu estado de natureza eram todos iguais em direito e capacidade de sobrevivência. Quando as capacidades do corpo de um se mostravam inferiores às de algum outro, a compensação podia ser feita pela capacidade de se articular, de se associar com outros também fracos, de se antecipar. O que podia tornar esta condição difícil de entender e aceitar é o fato de que sempre vemos nossa sabedoria de perto e a do outro de longe, julgando com vaidade que nossa própria sabedoria é superior, atribuindo a si maior valor, mesmo quando reconhecemos maior inteligência, eloqüência ou saber nos outros.
Deriva desta igualdade dos homens a esperança de atingirem os seus fins e na mesma intensidade competem pela sobrevivência, inclinados ininterruptamente a se antecipar e subjugar uns aos outros, justamente como um mecanismo de defesa contra o jugo. O medo da morte violenta, que traz oculto o desejo de se manter vivo, os leva a viver em guerra latente. Eram beligerantes por natureza e necessidade. Em sociedade não deixariam de sê-lo; ainda possuiriam esta natureza que faz calcular o que traz benefício e prazer, e o que causa prejuízo e dor; aproximam-se dos primeiros e afastam-se dos segundos.
O homem no Leviatã de Hobbes sequer desfruta prazer na companhia de outros homens, pois não recebendo deles a mesma atribuição de mesmo valor que dá a si, “se esforça, na medida em que a tal se atreva, por arrancar de seus contendores a atribuição de maior valor, causando-lhes dano, e dos outros também, através do exemplo” (p. 108).
E as causas de toda esta discórdia se encontram na própria natureza do homem: a competição, a desconfiança e a glória; que os levam a atacar desejando lucro, segurança e reputação.
E pode parecer estranho pensar que seja assim; que a própria natureza tenha dissociado os homens desta maneira. Mas basta investigar na nossa própria vida cotidiana e não será absurdo pensar por alguns instantes que talvez Hobbes tenha razão. Os homens roubaram, mataram, estupraram, subjugaram, subestimaram, “barbarizaram” uns aos outros durante praticamente toda história. Vivemos rodeados pelo medo da morte súbita, da perda, da submissão.
A solução para esta miserável condição foi então motivada, em partes pela paixão: “pelo medo da morte, o desejo daquelas coisas que são necessárias para uma vida confortável e a esperança de consegui-las”; e em partes pela razão: que “sugere adequadas normas de paz, em torno das quais os homens podem chegar a acordo”(p.111).  Este acordo teria levado os homens a um pacto que reuniu todos os seus direitos naturais e os concentrou num poder soberano absoluto, que garantiria segurança à vida de todos os seus súditos, permitindo que esta condição de guerra latente pudesse cessar e a sociedade se desenvolver.  Esta autoridade soberana, a partir do pacto formador do Estado, não poderia ser questionada, destituída ou desobedecida.
Na visão de Hobbes, portanto, o sentido da autoridade está fundamentado na necessidade dos homens de ter sua vida assegurada, pois entende que a necessidade de vida do homem está relacionada apenas à conservação de seu corpo; e que a própria razão tem isso como prioridade, fazendo com que o homem transfira tudo o que conhece e tudo o que não conhece sobre si, para que isto seja assegurado e conduzido de acordo com o que um Poder Soberano deseja e decide. Em síntese: a autoridade está fundamentada na necessidade e deriva da própria natureza beligerante do homem, não tendo, neste caso, compromisso nenhum além de garantir a vida.
Mas para Rousseau não faz sentido que o homem no estado de natureza seja assim e que a autoridade se dê desta forma. No Discurso Sobre a Origem e os Fundamentos da Desigualdade Entre os Homens, há um tipo de homem quase oposto, que não possui necessidade de subjugar, porque inclusive, possui já em sua natureza a piedade para com os outros homens e a capacidade de sobreviver sozinho. Ele é independente, robusto, ágil e feliz; é a sociedade que o faz degenerar e se tornar tão fraco e dependente.
Ele é como um animal, mas sua razão o faz superior; capaz de se defender até dos animais mais fortes. Diferente deles, o homem pode ir além da natureza, pois “enquanto cada espécie possui seu próprio instinto, o homem, não tendo talvez nenhum que lhe pertença, apropria-se de todos, alimenta-se igualmente de diversos alimentos que os outros animais dividem entre si e, por conseguinte, encontra sua subsistência com mais facilidade do que pode conseguir qualquer um deles.” (p. 164). Esta capacidade de adaptação Rousseau chama de Perfectibilidade.
Ele possui uma razão pouco desenvolvida, que se manifesta de maneira imediata, quando precisa caçar, se defender de perigos, se abrigar; não há linguagem e relações sociais contínuas, sua razão é movida pela necessidade de movê-la. Ele vive o hoje, lida apenas com as necessidades, temores e desejos imediatos.
Os pais, após formarem seus filhos para que sobrevivam, por exemplo, separavam-se deles e mal eram capazes de reconhecê-los no caso do reencontro, pois não havia a necessidade de criar vínculos.
Quanto aos outros homem e mulheres iguais, o indivíduo natural se visualiza tanto neles, que tende mais a se afastar no conflito do que atacar; e está tão imerso na natureza, que quase não se distingue. Ele tem o sono leve, está sempre alerta, se espanta e foge do que não conhece. Existe alimento para todos, fêmeas, machos e possibilidade de abrigo para todos. Não há porque se colocar em risco subjugando alguém, pois este não reagiria positivamente à possibilidade de ter sua liberdade usurpada. Graças à própria perfectibilidade que Rousseau cita, o homem seria capaz de aprender com o outro a construir habitações seguras e a estocar alimentos imitando os mais fortes e espertos, ao invés de atacá-los e roubá-los, colocando sua vida em risco. “Nem mesmo os animais combatem naturalmente com o homem, salvo no caso de sua própria defesa ou de uma fome extrema, nem demonstram contra eles essas violentas antipatias que parecem prenunciar que uma espécie esta destinada pela natureza a servir de pasto à outra”. (p. 167)
As características que Hobbes atribui ao homem natural foram, para Rousseau, adquiridas na própria sociedade. A sociedade fez o homem entrar em guerra uns com os outros. Porque ela acentuou as diferenças e alimentou nossas mais fortes paixões, nos afastando mais e mais da nossa natureza, nos tornando desiguais e, conseqüentemente, conflitantes.
“Tal foi ou deve ter sido a origem da sociedade e das leis, que criaram novos entraves para o fraco e novas forças para o rico” (p. 222), fazendo com que os homens alimentassem cada vez mais suas paixões, e se afastassem da sua natureza, da piedade e da liberdade. Pois “os cidadãos só se deixam oprimir na medida em que, arrastados por uma cega ambição e olhando mais pra baixo do que pra cima de si, passam a apreciar mais a dominação que a independência e consentem em carregar grilhões para, por sua vez, poder distribuí-los” (p.236). Sendo que “O homem selvagem e o homem policiado diferem tanto no fundo do coração e das inclinações que o que faz a felicidade suprema de um reduziria o outro ao desespero” (241).
Em sociedade o homem, diferente de como seria se fosse um servo do Leviatã, se tornou outro homem, degenerado e corrompido, mas ainda assim soberano sobre si mesmo. Soberania natural, pessoal e intransferível, que deve se impor sobre o Estado, ser o Estado, para que as desigualdades sejam diminuídas e não sejamos iguais apenas pelo fato de sermos todos súditos que não têm “outra lei além da vontade do senhor, nem o senhor outra regra além de suas paixões” ( p. 240).
A autoridade - aquele que decide pela vida de cada um , que garante a segurança de cada um - para Rousseau está, portanto, também fundamentada na própria natureza do homem; não como um resultado de sua necessidade, mas como um direito que cada indivíduo possui de decidir seu destino; direito que não pode ser transferido, vendido ou cedido (mas pode ser roubado – e foi).
É preciso considerar que o homem social quando vê o mundo social, não consegue se separar do que observa a ponto de não colocar um pouco de si em tudo o que vê e expressa. Parece impossível se separar totalmente do seu objeto de estudo, de observá-lo de forma objetiva. Rousseau também considera esta questão quando diz: ” Oh, homem, de qualquer terra que sejas, quaisquer sejam tuas opiniões, escuta: eis tua história, tal como acreditei lê-la, não nos livros de teus semelhantes, que são mentirosos, mas na natureza que jamais mente. Tudo o que vier dela será verdade, só haverá erro no que eu, sem querer, houver introduzido de meu.” (p 161-162)
Sendo assim, possivelmente, quando Hobbes escreveu o Leviatã, ele estava falando da natureza que também via dentro si. E da mesma maneira, quando Rousseau falou da natureza dos homens, ele também falava sobre sua própria vontade, sobre suas próprias paixões, que lhe conferiam a priori um direito inalienável, assim como a todos os outros cidadãos.
Voltando à questão que proponho; qual é o porquê da autoridade política? Esta que já se impõe sobre nós desde o nosso nascimento? Porque criar algo que limitaria a liberdade do homem? Porque a razão não protegeu o homem do convívio social que o faria degenerar, mantendo sua autoridade natural intacta?
Me parece bastante razoável que o homem, já no estado de natureza, até mesmo quando mais forte, possuísse o instinto natural de proteção ao mais fraco e não o de dominação; pois seria até mais vantajoso para sua sobrevivência se associar do que conflitar, e percebendo o desenvolvimento do outro, imitá-lo e não atacá-lo. Também me parece que mesmo sendo o homem tão feliz em sua independência e isolamento, ele já era em si um ser social. Basta pensar que a piedade, “um sentimento natural que, moderando em cada indivíduo a atividade de amor de si mesmo, concorre para a conservação mútua de toda a espécie” (p. 192), só existe e só faz sentido em relação a outra (s) pessoa (s). Isso de certa forma já mostra que as faculdades do homem se desenvolvem também (e talvez mais) na vida social. A sua virtude está também na sua natureza social, na sua vida em relação ao outro e naquilo que eles motivam uns nos outros. Porque mesmo que a piedade já exista em cada indivíduo isoladamente, ela só se manifesta no contato social.
Então, ainda que os homens enquanto agentes livres, em sociedade “se entregam a excessos que lhes causa a febre e a morte”porque o pensamento “deprava os sentidos e a vontade ainda fala quando a natureza se cala” (p 173); a dor causada pela febre, morte, o medo e o desejo de se viver com mais prazeres que dores estimulam as capacidades cognitivas do homem e aprendendo pouco a pouco sobre si mesma, a humanidade acumulou conhecimentos e se impôs limites em prol de sua própria sobrevivência e de seu desenvolvimento.
Assim como, imerso na natureza, o homem aprende com ela mesma a viver, a sociedade ensina o homem social a viver nela, inclusive, porque é praticamente impossível que seja de outra forma.  Acabamos por, como disse Rousseau, agradecer muito às nossas paixões, pois “é pela sua atividade que a razão se aperfeiçoa” (p 175).
Portanto, o homem criou a sociedade de acordo com suas paixões, com suas necessidades naturais; se transformou, se aperfeiçoou com sua perfectibilidade, degenerando e ao mesmo tempo se transformando num outro homem que jamais voltará a ser o que era. E se o homem era feliz na natureza, se a vida social é mais “sujeita a tornar-se insuportável” (p. 186), ele criou a sociedade por necessidade, porque já não era mais possível viver da mesma maneira, já que o mundo à sua volta foi se transformando com o tempo; e ele também.
Para Rousseau, o homem nasce livre e sua liberdade não pertence a mais ninguém. Até mesmo a autoridade da mãe e do pai acaba quando os filhos (as) já têm bem desenvolvida sua razão e são capazes de defender sua própria sobrevivência. A relação entre eles se mantém por convenção (social), para o benefício da família, da espécie, e não por um direito inato do mando e dever inato de obediência. O direito inalienável de soberania sobre si mesmo, de exclusivo domínio sobre si mesmo, também o torna soberano em sociedade, assim como todos os outros o são sobre si mesmos. 
Então, o homem em sociedade é ao mesmo tempo soberano e ao mesmo tempo cidadão, ele também é - eu acrescento - ao mesmo tempo responsável pelo rumo que ele como indivíduo toma e que sua comunidade toma.  
Se sou soberana no meu direito civil, devo ser da mesma maneira soberana em minha responsabilidade civil. Não somos reféns da natureza, das nossas paixões ou de nossa razão e não devemos ser da sociedade, mas aprendemos com ela a viver. Já temos, de certa forma, implícitas nas próprias normas e regras sociais todas as noções de que precisamos para viver, ainda que seja para contrariá-las e transformá-las. Nós aprendemos a questionar e ir contra os valores impostos pela sociedade justamente com a própria vida social. Aprendemos a solucionar problemas, justamente com a necessidade de fazê-lo, como “os povos do Norte (que) são mais industriosos do que os do Sul por terem menos condição de viver sem o ser” (p.176).
Não possuímos as respostas sobre a nossa natureza e sobre como viver em sociedade impressas de maneira estática no nosso interior, porque a própria natureza humana está em movimento e muito mais nos descobrimos através do convívio com os outros, insisto, nem que seja para descobrir quem não desejamos ser.  Precisamos ser direcionados para um ou outro caminho. Isto acontece desde que nascemos e se não houvesse limites impostos, habilidades observadas e aprendidas através do cuidado e do direcionamento dos outros, sequer sobreviveríamos. E como estamos aqui não apenas como sobreviventes da mesma desgraça, mas como habitantes da mesma casa, todos devem aprender também a lavar a louça.
Nos manter eternamente como crianças incapazes de assumir nossas responsabilidades, de raciocinar e deliberar com bom senso e empatia; eternamente dependentes de nossas autoridade políticas, de nossos vícios, da nossa razão ou das nossas paixões degeneradas, do medo da fome, do desemprego e da violência, da preguiça inerte... Livres nem mesmo em relação a nós mesmos. É assim que os grandes ditadores mantêm nas mãos nossa liberdade.
Não me faz sentido um poder de autoridade, de influência, de condução legítimo, que não tenha como fundamento o cuidado, o preparo e a inspiração para a liberdade que a natureza humana trás consigo. E como não desejo a ninguém que seja escravo de suas paixões degeneradas, espero que ao mesmo tempo em que aprendamos sobre a prisão em que vivemos e como serrar as grades, também aprendamos sobre o quanto a liberdade nos torna responsáveis pelo mundo em que passamos a viver, pelas pessoas que nele vivem e por sua liberdade.
Tomarei de empréstimo a definição brilhante de Spinoza sobre a função de Estado, quando diz que seu fim “não é fazer os homens passarem de seres racionais a bestas ou autômatos: é fazer com que a sua mente e o seu corpo exerçam em segurança as respectivas funções, que eles possam usar livremente a razão e que não se digladiem por ódio, cólera ou insídia, nem se manifestem intolerantes uns para com os outros. O verdadeiro fim o Estado é, portanto, a liberdade.”
O porquê da autoridade política se responde então pela sua função: ajudar os cidadãos a desenvolverem sua razão e suas habilidades, vivendo juntos de forma menos conflituosa possível, como uma representação social de um bem querer individual, de uma piedade natural, de um amor incondicional; que consiga nos fazer viver menos hobbesianamente.
É por este tipo de autoridade que a humanidade deve ser conduzida. Que terá a dura missão de lidar com os imbecis, degenerados e mórbidos, que levam os outros à mesma desgraça, enquanto os sábios, tão resistentes à degeneração, sentam e choram, incapazes de reagir, pela fobia do sangue nas mãos e pela piedade - que talvez também tenha degenerado e os feito passivos.
O resultado é, contrariando a natureza ou não, um punhado de gente regurgitando superficialidade enquanto a multidão esfaimada carece do necessário.
É preciso recuperar nossa autoridade natural, assumir nossa responsabilidade natural e ajudar a conduzir a sociedade às verdadeiras Liberdade, Igualdade e Fraternidade!
Questão Pertinente: Como matar a fome desta multidão? Como libertar os homens dos grilhões sociais e ao mesmo tempo afastá-los do egoísmo? Qual a distância (e limite) entre a liberdade do indivíduo e a de cada outro indivíduo livre? E qual é a dose exata de negação das paixões, das vontades individuais e da própria natureza (animal) para que o resultado não seja uma negação de si e/ou do outro, uma vida irrefletida; que não leve o homem a se tornar desumano: ora máquina, ora monstro?

Bibliografia
Hobbes, Thomas. Leviatã. Nova Cultural, 1997
Spinoza, Baruch. Tratado Teológico-Político (fornecido pelo professor Silvio Rosa Filho)


Rousseau, Jean Jacques. Discurso Sobre a Origem da Desigualdade Entre os Homens. 

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