O Efeito do Medo

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O Efeito do Medo 
 O que faz com que o ser humano deseje uma autoridade política e espiritual? Tanto para Hobbes, em seu Leviatã, quanto para Spinoza, em seu Tratado Teológico-Político, todo homem é refém do medo e isto o leva a desejar, de forma tal a necessitar de uma autoridade que o “salve” do desconforto, do perigo, da incerteza e do infortúnio.

    Se não há quem nos salve da guerra e, conseqüentemente, da morte violenta, da submissão, da dor; devemos eleger um protetor e guardião da paz. É o que busca a razão, motivada pelas paixões que angustiam o homem de Thomas Hobbes no seu terrível estado de natureza.

   No capítulo XIII de Leviatã - Da condição Natural da Humanidade, o autor não economiza ao definir o homem através de seu lado mais obscuro. Começa pela igualdade entre as faculdades do corpo e do espírito para maquinar e executar defesa e ataque. Igualdade natural esta que o leva igualmente a competir, desconfiar e ansiar pela glória, pois o homem de Hobbes é quase que plenamente beligerância. Só há espaço para defesa, ataque e medo; sendo o homem incapaz até de gozar verdadeiro prazer na companhia de outro homem.

   Em determinado momento do capítulo, Hobbes inclusive convida o leitor a analisar sua própria vida e verificar se, em suas atitudes cotidianas, confia nos outros homens e mulheres iguais, familiares e amigos que o cercam; se não vê neles esta mesma natureza agressiva, essa mesma tendência inata para usurpar e subjugar, para competir e se relacionar de maneira instrumental.

   O Homem de Hobbes vive em estado de guerra até quando não está em guerra; nesta onde tudo é válido e nada é bom ou justo, tanto quanto nada é mau e onde não há injustiça.  Neste cenário é mesmo certo dizer que “a vida do homem é solitária, pobre, sórdida, embrutecida e curta” (p. 109). Sendo reféns do medo, entregues à incerteza, é impossível que os homens construam qualquer tipo de sociedade. Não há propriedade, agricultura, artes, produção de conhecimento...

   Mas para esta miserável condição do homem existe possibilidade de fuga. Graças em parte às paixões, que fazem o homem temer a morte e desejar a paz; em parte à razão, que sugere normas adequadas de paz, a que Hobbes também chamou de leis de natureza.

   Essas leis motivaram um pacto entre todos os homens e os levaram a instituir uma autoridade soberana a quem transfeririam todos os seus direitos, exceto o direito inalienável de defesa imediata à vida. Este soberano estaria fora do pacto e teria como obrigação apenas manter seus súditos em segurança. Ele deveria tomar e executar todas as decisões, até mesmo as que dizem respeito ao pensamento. Todas as partes do corpo social deveriam ser organizadas e reguladas pelo soberano; apenas obedecidas pelos súditos. Não há livre pensamento e é extremamente importante que o povo não conheça nada que não tenha sido oferecido pelo monarca, pois tenderia a se desviar para a desobediência civil.

   Não é possível voltar atrás. Não é permitido questionar ou destituir o soberano, ainda que ele não esteja cumprindo seu papel (Segundo Hobbes, isto naturalmente levaria a humanidade de volta ao estado de natureza e um novo soberano seria instituído atarvés de um novo pacto). E a desobediência é punida, se necessário, com a morte.

   O medo de ser subjugado levou o homem a se subjugar.
   O medo protegeu o homem da morte... Ou o levou a fazer coisas muito estúpidas. Spinoza concordaria.
No Prefácio do Tratado Teológico-Político, o filósofo também não economiza, mas ao descrever o medo através de seu lado mais obscuro.

   É ele “a causa que origina, conserva e alimenta a superstição” (p. 8) ; é ele que leva o homem a acreditar em coisas absurdas e a depositar em alguma autoridade seu direito à liberdade, ao livre pensamento e à busca de dignidade. Se não temessem a insegurança e o sofrimento e se não cobiçassem fortunas e benefícios incertos, os homens não seriam ludibriados por sua própria imaginação, sonhos e extravagâncias infantis. Sendo justamente os que mais o desejam, portanto, os maiores escravos da superstição.

   A superstição, cristalizada em religião, é para Spinoza o grande segredo monárquico “para manter os homens enganados e disfarçar o medo em que devem ser contidos para que combatam pela servidão como se fosse pela salvação e acreditem que não é vergonhoso, mas sumamente honroso, derramar o sangue e a vida pela vaidade de um só homem” (p. 9) .

   Spinoza se espanta com a contradição entre as pregações e as manifestações cotidianas ferozes dos pastores cristãos (espanto que talvez não ocorresse a Hobbes). A igreja degenerou-se e foi apoderada por oradores que ao invés de instruir o povo, ansiavam aplausos e um artifício para censurar publicamente os dissidentes. Ficou o culto externo, a semente do medo; a fé se reduziu a crendices e preconceitos, e estes tornaram o homem irracional, lhes amputando e apagando a luz do entendimento. Ironicamente quem condena a razão e quem tem o entendimento como coisa corrompida por natureza é justo quem diz possuir a luz divina. Se a possuíssem e a compreendessem agiriam com amor e piedade.

   Quanto às Escrituras, prossegue Spinoza, pouco se entende para o tanto que se fala. Desprezam a luz natural (como também parece ter desprezado Hobbes) e até a condenam. ”Invenções humanas passam-se por documentos divinos e crendices por fé” (p. 11) ; e vê-se a falta de luz expressa na própria doutrina que “criaram” de suas interpretações tendenciosas.
   Para falar da verdade absoluta da Escritura é preciso a priori compreendê-la. Spinoza procurou fazê-lo.  Concluiu que “a autoridade dos profetas só tem peso no que diz respeito à vida prática e à verdadeira virtude” (p. 11) ; as opiniões são irrelevantes. É preciso analisar as coisas sagradas por elas mesmas. Os juízos que fazemos delas não devem ajudar.

   As Escrituras deixam livre a razão, ensinado de forma simples e clara a obediência a Deus, a justiça e a caridade. Este conhecimento revelado pelas Escrituras difere do conhecimento natural e não compete com este sob nenhum aspecto.  Além disso, considerando as diferenças de temperamento e opinião, “é necessário deixar a cada um a liberdade de julgar e a possibilidade de interpretar os fundamentos da fé segundo sua maneira de ser” ( p. 12) ; e analisar a virtude e o pecado de acordo com as ações. Apenas assim se pode obedecer a Deus espontaneamente e dar valor aos seus ensinamentos. Para Spinoza, isto evidencia a liberdade que a lei divina revela.

   Ao longo do Tratado Teológico-Político, como antecede no prefácio, Spinoza pretende mostrar que não se pode oprimir as liberdades individuais sem impor graves riscos ao próprio Estado e à paz social. Ao contrário de Hobbes, o autor defende que nosso direito natural vai até onde o desejo e o poder puderem levá-lo, com o limite de que não se pode, com base neste direito, subjugar e suprimir o direito à liberdade de outrem. Cada um é possuidor de sua própria liberdade.

   E ainda que, como acontece no Leviatã de Hobbes, todos os homens transfiram seu direito natural de autodefesa e liberdade a um soberano, não é possível privar-se da autodefesa (o que em termos Hobbes também concorda) a tal ponto que se deixe de ser homem, então não se pode ser plenamente privado do seu direito de natureza. O súdito ainda “naturalmente” mantém alguns privilégios que não lhe podem ser recusados sem que isso resulte em problemas para o Estado. (Perigo que talvez Hobbes desconhecesse.)

   Em outra questão Hobbes e Spinoza também concordaram: A religião é conseqüência do medo e da ignorância. É a  incapacidade das pessoas de entender as causas de determinados fenômenos de sua realidade que lhes implica relacionar tudo aos céus, aos astros, aos animais, aos deuses e deusas.

   Para Spinoza este medo é a principal arma daqueles que desejam o poder sobre os outros homens e também o segredo para mantê-lo; Utilizado inicialmente na religião e em seguida, como um prolongamento, na política.

   Para Hobbes o medo em forma de religião só parecia mesmo ruim quanto competia com o poder absoluto do monarca. Pois para ele tanto os fundadores de Estado quanto os homens através dos quais nos chegaram os ensinamentos de Deus, como Abraão e Moisés, semearam o medo a fim de “fazer com que os homens que neles confiavam tendessem mais para a obediência, as leis, a paz, a caridade e a sociedade civil” (p. 100); e no reino de Deus, que é toda a humanidade, a política e as leis civis fazem parte da religião, “não tendo portanto lugar a distinção entre a dominação temporal e espiritual” (p. 100) ( Que se opõe, então, à visão de Spinoza ). No capítulo Da Religião, em que Hobbes aborda este assunto, fica claro que para ele a igreja jamais deve competir com o Soberano pela obediência do povo. Todo o poder deve ser concentrado no Soberano.

   Considerando o cenário histórico em que Tomas Hobbes escreveu Leviatã, é possível sugerir que o motivo de sua obra também tenha como grande causa o medo. E considerando o medo como o grande segredo da monarquia para a contenção do povo em sua miséria e resignação, o que falta para completar as causas de Hobbes pode bem ser seu interesse e esperança de que o príncipe, e apenas um príncipe, aquele de quem era aliado, salvasse “seu mundo”,  da guerra civil que o ameaçava.

   Spinoza também parece ter sido motivado pelo medo, mas não o medo que cega; o medo (ou seria indignação?) de ver os homens reféns da ignorância e da cobiça; entregues ao conhecimento daqueles que o utilizam e o censuram apenas para garantir e eternizar seus próprios privilégios. Talvez ele não compartilhasse do prazer no poder sobre o outro, da relação instrumental com o mundo... Talvez não compartilhasse do estado de natureza de Hobbes.

Questão pertinente ao curso e conclusão: De quem somos reféns? De um homem (um deus) que nos governa de fora pra dentro?... Ou de um medo que nos governa de dentro pra fora? Seriamos natural e imutavelmente livres? E do medo, somos ou poderíamos ser livres? Ou tanto a liberdade quanto a prisão são criações da própria sociedade?

   Sendo natural ou não, me parece, a liberdade, algo pelo que deveríamos lutar, como que pela vida. E no fundo é: a gente bem sabe que vida em gaiola não é vida. É subvida!  E o medo... Algo que deveríamos combater veemente, se ao invés de nos preparar para a luta ou para a fuga com sua injeção de adrenalina, nos paralisa frente ao perigo e nos coloca a mercê do predador!

  Hipótese de Leitura: Procurei ao longo de todo o texto deixar clara minha sugestão de leitura de ambos os textos. Essa sugestão é um empréstimo da lente a qual utilizo para ver o mundo. Ela é portanto a minha interpretação dos textos e foi quase inevitável colocar nela um pouco da minha posição em relação aos temas abordados pelos autores e das sensações que eu tive ao lê-los.

Campo temático comum: O efeito do medo (nos indivíduos e,conseqüentemente, na sociedade)
Bibliografia: Hobbes, Thomas. Leviatã. Nova Cultural, 1997
Spínoza, Baruch. Tratado Teológico-Político. Prefácio (fornecido pelo professor Silvio Rosa Filho)

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