Reflexões sobre o individualismo contemporâneo à luz da Antropologia Britânica

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Pensar sobre a alteridade, seja em termos antropológicos ou do senso comum, é sempre algo que gera controvérsia. Hoje, no clímax do individualismo, parece a muitos, sobretudo aos que não estão inseridos nas discussões das ciências sociais, que a individualidade é algo dado, natural, que sempre existiu e que sempre teve sua legitimidade e possibilidade de ação nos grupos sociais.

Em seu início pós-evolucionista, pensando em grandes nomes do estruturalismo e do funcionalismo como Durkheim, Radcliffe-Brown, etc., a antropologia concebia os indivíduos apenas como partes de um todo, que se eleva acima destes e que não se reduz a sua mera soma. As análises antropológicas eram feitas a partir do isolamento de povos ditos “primitivos”, buscando entender em sua estrutura a dinâmica que os mantinha funcionando, levando em conta que possuíam regras e normas específicas, que precisavam ser entendidas em suas particularidades.

Os antropólogos da escola de Chicago deram continuidade às pesquisas sobre a alteridade questionando seus pressupostos metodológicos e levando as discussões para outros caminhos, em que tanto a interação entre povos diferentes com normas, regras, cosmologias diferentes, quanto a ação individual passam a ser consideradas de grande relevância para a análise antropológica.

A controvérsia comum, recorrente em conversas informais, mas também acadêmicas, de que me refiro não está exatamente na forte coerção exercida pela sociedade sobre o indivíduo, mas na possibilidade ou impossibilidade que este tem de agir fora da regra, de acordo com seus próprios interesses, e que ênfase se dá a essa condição. Isto é, os indivíduos não parecem questionar tanto a força de coerção da sociedade, quanto a possibilidade que têm de se negar a segui-la.

Quando pensamos, por exemplo, nos rituais que ocorreram nas sociedade de ontem e mesmo nos que
ocorrem hoje, não parece haver dúvida de que a sociedade possui meios muitos antigos e eficientes para manter os indivíduos sob seu jugo e produzir neles pensamentos e sentimentos que eles jamais seriam capazes de produzir sozinhos. E o que a “sociedade” poderia desejar com isso? Alguma ordem que a permita funcionar e sobreviver ao longo das gerações, frente aos obstáculos impostos pela natureza e pelas alteridades em seu entorno, assegurando sua durabilidade e autorreprodução contínua. Para manter esta ordem, a própria desordem serve como parâmetro. Como demonstrado por Turner – à luz de Van Gennep –, é nos momentos de desordem, de liminaridade, na anormalidade do rito em relação à vida diária, que a sociedade mostra sua força, sua superioridade e sua necessidade de existência frente aos membros individuais do grupo.

Cada sociedade possui seus próprios mecanismos de coerção e, por isso, o comportamento dos indivíduos pode diferir em muitos aspectos em cada grupo social, de acordo com o que a sociedade em que estão inseridos espera e aceita deles e dos signos que esta sociedade utiliza para pensar a si mesma.

Porém, Gluckman nos oferece um bom de exemplo do quanto é problemático tentar entender um povo que se transforma inevitavelmente em contato com outras culturas, pensando-o em um isolamento que só pode existir quando abstraímos este povo de sua própria realidade cotidiana. A partir do momento que se estuda um povo, este já não pode mais ser considerado exatamente isolado, e se o contato, a depender da distância do observador, não provoca mudanças imediatamente visíveis naqueles que são estudados, sem dúvida transformam em muito o conjunto de conceitos, o que também é dizer, o sistema simbólico, utilizado por aqueles que se esforçam em dar algum sentido à existência da alteridade que estudam.

Além disso, o autor, assim como outros antropólogos da escola de Chicago, passa a considerar a ação
individual como algo possível e relevante, que deve ser levada em conta na análise antropológica por sua força transformadora em relação às normas e regras criadas pela sociedade em que vivem.
A ponte, que ao mesmo tempo era um meio de solucionar a impossibilidade de navegação por conta das subidas periódicas de um rio, que permitia assim “a comunicação do magistrado de Mahlabatini com a parte de seu distrito localizada além” dele e o acesso à assistência em uma instituição social como um Hospital – descrita por Gluckman em sua Análise de uma situação social na Zululândia moderna é apenas um exemplo da relevância analítica da interconexão e (principalmente no que se refere a essa reflexão) a interdependência constitutiva entre a parte e o todo, entre o um e o outro, entre o indivíduo e sociedade em seu entorno.

No mundo hodierno, o que não faltam são pontes conectando uma diversidade expressiva de regras, normas, simbolismos, cosmologias e ao mesmo tempo, pensando “na situação social” mundo capitalista (globalizado), os indivíduos parecem pouco desejosos de ritos coercitivos que nos mergulhem em uma força social que está para além de nossos “interesses individuais”. O que é compreensível, visto que muitas vezes se romantiza e se conjectura uma comunidade unida, saudável e sábia, coerente para a vida de cada um dos indivíduos, mas que na prática parece nunca ter existido.

 Basta pensar na posição socialmente determinada para a mulher em cada sociedade já conhecida e se questionar se o direito à negação dos pressupostos socialmente aceitos não pode ter realmente seu valor. Se depender da experiência individual específica, talvez somente as mulheres possam realmente entender o ponto da questão, mas penso que a questão está para além da experiência individual. É exatamente este o ponto.

Porém, a forte tendência individualizante dos nossos tempos parece levar a uma tentativa de resolução dos conflitos sociais que se dá por um pretenso isolamento das influências sociais. Isolamento, na prática,impossível.

O que se percebe nos discursos, o que os homens exprimem através da linguagem, dos símbolos –
intrinsecamente sociais – são frases como “só eu mesmo(a) posso decidir o que é melhor para mim”, como se esse próprio tipo de pensamento não fosse socialmente emitido e socialmente acessado. E a liberdade (muitas vezes apenas formal) de que os homens desfrutam seria impossível sem a mínima cooperação e adaptação entre o eu e a alteridade a ponto de que possam ser pensadas como dignos da mesma atenção.

Quando Gluckman diz que “o fato dos zulus e dos europeus poderem cooperar na inauguração da ponte mostra que formam conjuntamente uma única comunidade com modos específicos de comportamento”, o que me salta à vista é que o que os torna uma única comunidade é o fato de que sob “situações sociais” diferentes surge cooperação mútua e uma adaptação sem coerção aos comportamentos uns dos outros (Gluckman, p. 238).

Não gostaria, dizendo isso, que se perdesse de vista todas as coerções e opressões que ocorreram e ocorrem diariamente em todas as épocas do mundos e que parecem tão determinantes (entre outras determinações) dos rumos da história, mas quanto ao efeito da sociedade sobre os indivíduos, a visão de Gluckman de um indivíduo que não é sempre tão passivo e impotente em relação à sociedade em que vive serve tanto para o mundo Zulu-europeu, quanto para o capitalista-individualista-ocidental.
Não se pôde, por exemplo, mesmo sob intensa violência e engenhosidade, impedir que alguns indivíduos utilizassem o mesmo conjunto de signos aceitos socialmente em uma sociedade para produzir uma perspectiva de mundo que nega o padrão comum de pensamento, enfraquecendo a força soberana de coerção da sui generis sociedade em relação às meras partes que a mantêm em funcionamento.

Outro ponto relevante para esta reflexão é que, como colocado por Edmund Leach, as representações, os discursos produzidos socialmente e reproduzidos não são espelhos de práticas e não se pode buscar
explicações para o comportamento dos indivíduos na literalidade daquilo que dizem. A análise das práticas e das representações não devem se confundir. Mesmo quando o homem diz que só ele mesmo é capaz de decidir o melhor para si, ou que tem um compromisso apenas consigo mesmo, isto não significa que na prática não participe da vida coletiva e que não busque nela o seu melhor sentido.

Desta maneira não nos inclinamos a confundir real e ideal e a colocar os indivíduos em uma condição de total passividade em relação às forças sociais, ou de total ignorância, ou, no caso dos homens e mulheres de nosso tempo, de deliberado egoísmo ou pura negação à cooperação.

O indivíduo pensa com a linguagem do mundo, mas vive, experimenta o mundo social a partir de seu corpo, que, em termos spinozanos, possui afetos específicos sentidos individualmente (ilhas afetivas). Este mundo de afetos em que o indivíduo se manifesta é muitas vezes ele mesmo alteridade, que se impõe e que parece não corresponder nem com os pensamentos que lhe vem à mente, nem com as práticas do mundo externo ao corpo.

Nos processos de articulação, nos pontos de encontro entre sistemas sociais diferentes, entre corpos
diferentes, os indivíduos encaram o desconhecido de maneira muito específica, e precisam, mais do que resistir à sua existência, dar um sentido a ela que não coloque em risco o sentido atribuído à sua própria.

Quando as culturas se adaptam no cruzar nas pontes, quando uma estrutura social interage com outra, são os indivíduos que precisam utilizar de sua capacidade cognitiva para reorganizar a idéia do mundo que os cerca, e se a sociedade busca permanência e reprodução contínua, está a cabo dos indivíduos, concordando com Gluckman, o papel transformador. Não digo com isso, porém, que se tratam de seres isolados, que pensam de acordo com “seus próprios interesses”, pois os próprios símbolos utilizados para pensarem sobre si mesmo foram criados externamente e condicionam alguns dos limites de sua reflexão.

Digo com isso, o que não é novo, que o “indivíduo” é uma abstração, um conceito historicamente
construído, mais um componente do sistema classificatório da sociedade, que os homens e mulheres modernas utilizam para pensar sobre si mesmos e sobre sua ação no mundo. Mesmo a ênfase que estes indivíduos dão à idéia do que são possui raízes na sociedade moderna.

Há entre o que os homens idealizam e a realidade do que vivem uma relação contraditória e pensar – como o faz Edmund Leach – no choque entre real e ideal e no que é produzido a partir dele parece oferecer uma forma mais produtiva e honesta de pensar a si e à alteridade. Desta maneira somos mais capazes de perceber que não nos diferimos tanto assim e que exigir coerência entre o que se fala e que se pratica, ou entre razão e emoção, é como pedir que os outros homens e mulheres deixem de ser tão humanos quanto nós.

Além disso, concordando com Durkheim, me parece que é na sociedade, nos “processos de articulação” (Gluckman) que os indivíduos superam os limites de sua individualidade, isto é: é através do outro que o um se eleva para além do corpo limitado, da “ilha afetiva” com que experimenta a realidade.

Esta idéia de cooperação constitutiva, bastante fora de moda em tempos de profundo individualismo –considerando as definições de individualismo contemporâneo de autores como Zygmunt Bauman ou
Lipovetsky – passa a ter um rótulo que remete à caridade, à bondade moral, como algo que, a partir de sua individualidade, alguém pode escolher viver ou não.

Com isso, quero dizer que diferente do que muitas vezes é expresso nos discursos dos próprios indivíduos, só é possível compreender o que alguém é e todas as demais reflexões em torno da existência individual se pensado em sua relação com o mundo à sua volta. Com isso colocamos novamente em voga questões como “o que se quer dizer com direitos individuais?”, com “interesses individuais”, já que eles não são exatamente individuais na prática.

Os ritos que exprimiam com tanta força a sociedade que os criou e que produziram nos indivíduo as idéias e sentimentos que possuem de si mesmos têm hoje uma posição de menos destaque no conjunto de regras e normas produzido pela própria sociedade na vida cotidiana dos indivíduos, como se a própria sociedade ao longo do tempo tivesse minado sua força de coerção sobre seus membros.

Isso não deve nos tirar de vista todas as novas formas de ordenação desenvolvidas através do conflito e da adaptação entre culturas e indivíduos.

A melhor forma de entender a sociedade e o campo de ação real de seus membros parece aquela que está de melhor acordo com seu funcionamento, que se dá por uma constante interação entre estrutura social e ação, entre simbolismo e realidade – e não determinação,. Qualquer análise que considere isolamentos ou determinações arbitrárias entre eles, ainda que contribua para avanços científicos, corre o risco de negligenciar detalhes importantes.

Uma ciência, uma teoria política ou filosófica, ou uma reflexão individual que concebam a possibilidade de um mundo estruturado no isolamento entre indivíduos autorreferentes e com interesses opostos ou inconciliáveis, e que vêm na sociedade apenas um meio através do qual estes interesses em concorrência são negociados e regulados, evitando, assim, a violência e a desordem; ou que vêm na sociedade uma força que condiciona irremediavelmente os pensamentos e sentimentos de seus membros; me parecem abstrair as relações e potencialidades reais dos seres humanos em geral, priorizando os discursos e simbolismos de que dispõem e a sempre confusa maneira de que se utilizam deles.

Na prática, na “situação social” em que vivemos, as fronteiras que separam o um do outro parecem cada vez maiores e mais fortes – a ponto dos indivíduos se pensarem, muitas vezes, como seres isolados, que constroem suas histórias a partir de si mesmos, de seu mérito ou fracasso. Porém, aqui os homens (e mulheres) continuam fazendo sua realidade juntos e sem saber exatamente como* e para entendermos a experiência humana não devemos jamais perder isto de vista. Mesmo frente a todos os avanços da ciência e do pensamento humano pensar a existência de um outro e conviver com a diferença aparente do outro parece sempre difícil para muitas pessoas; e quanto mais enfática a diferença, em geral mais difícil – sugiro – porque implica com ainda mais ênfase ao enfrentamento do desconhecido que nós mesmos somos.

* Referência a Marx, A ideologia Alemã.

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