Sapiens: Uma breve história da humanidade – Yuval Noah Harari

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Introdução
O livro de Yuval Noah Harari, Sapiens, conta de que maneira nossa espécie foi transformada por três Revoluções, determinantes no excepcional percurso da história humana: as Revoluções Cognitiva, Agrícola e Científica. Inseparáveis de toda esta história, as consequências para o planeta e para a própria raça humana têm seu lugar de destaque na narrativa, levando a uma reflexão final sobre os caminhos que levam ao futuro.
Os humanos (todas as espécies do gênero Homo – sapiens, erectus, neandertais, etc.) surgiram há cerca de 2,5 milhões de anos na África Oriental. Por volta de 2 milhões de anos, os sapiens deixaram seu lar e se aventuraram rumo a outros territórios. Apesar de nossas ideias equivocadas sobre algum tipo de linha de descendência, há cerca de 50 mil anos diversas espécies do gênero Homo viveram ao mesmo tempo e sem que houvesse grande vantagem de umas sobre as outras; compartilhavam o mesmo ambiente, mas tendo características já muito diferentes quanto às capacidades cognitivas e habilidades sociais; umas eram maiores, outras, menores; algumas eram mais dóceis, outras mais agressivas. Suas cabeças eram maiores quando em comparação com outros animais, fazendo com que passassem mais tempo em busca de alimento – pelo alto gasto energético que o cérebro implica para funcionar. Além disso, seus músculos atrofiaram pela transferência de energia dos músculos para o cérebro.
O controle sobre o fogo operou também mudanças cruciais no corpo dos humanos. Consumindo alimentos cozidos, os humanos passavam menos tempo digerindo-os, o que fez com que seu intestino diminuísse ao longo do tempo, abrindo espaço para o gasto de mais energia com o cérebro e seu maior desenvolvimento. O fogo também expandiu o poder dos humanos para além de seu corpo – possibilitando o cozimento de uma variedade de alimentos ou a destruição de toda uma floresta.
Outro traço singular de nosso gênero é que andamos eretos, tendo as mãos livres para nos defender e caçar de novas maneiras, para produzir ferramentas, etc.; mas que tem suas desvantagens: Pagamos pela adaptação da coluna ereta e um crânio aumentado “com dores nas costas e rigidez no pescoço” (p.18). As mulheres pagaram ainda mais: o canal do parto ficou mais estreito e o parto mais difícil. A seleção natural favoreceu nascimentos precoces, quando a cabeça do bebê ainda era pequena, quando os sistemas vitais ainda não estavam totalmente desenvolvidos. Isso aumenta a dependência em relação aos demais e permite que o bebê possa ser moldado de maneira que não se conseguiria fazer com nenhum outro animal.
Como o sapiens evoluiu pela primeira vez não se sabe, mas os cientistas concordam que por volta de 150 mil anos na África Oriental havia sapiens exatamente como nós. Também concordam que há cerca de 70 mil anos, os sapiens se espalharam na península Arábica e de lá chegaram rapidamente ao território da Eurásia, que em sua maior parte já era ocupado por outros humanos. A teoria da “miscigenação” e a teoria da “substituição” tentam explicar o que aconteceu no encontro entre as espécies. A primeira tem como hipótese que as espécies se cruzaram e se fundiram, o que também teria ocorrido na Ásia Oriental, onde os sapiens encontraram os Homo erectus. A segunda afirma que, na verdade, os Homo sapiens prevaleceram às demais espécies, exterminando-as direta ou indiretamente (utilizando seu potencial cognitivo para caçar todas as presas do território, colher todas as frutas, etc.). Nas últimas décadas, a segunda teoria foi mais aceita. Se a culpa da extinção das demais espécies de humanos é culpa dos sapiens não se sabe com toda certeza, mas o que se sabe é que “tão logo eles chegavam a um novo local, a população nativa era extinta” (p.27).
A Revolução Cognitiva
Há cerca de 70 mil anos, a revolução cognitiva levou os sapiens a se locomover com mais rapidez, a inventar barcos, lâmpadas a óleo, agulhas, etc. Isso foi possível pela mudança nas formas de pensamento e comunicação. Essa mudança, ocorrida entre 70 mil anos e 30 mil anos atrás constitui a Revolução Cognitiva. De que maneira os sapiens, que eram mais frágeis que os neandertais e tantos outros animais conseguiram se tornar o maior de todos os predadores? Segundo o autor, a resposta mais provável e que torna o debate possível é: “graças à sua linguagem única”.
Nossa língua é versátil, pode armazenar, consumir e comunicar uma quantidade incrível de informação sobre o mundo físico e social. Essa linguagem parece ter se desenvolvido não para falar do primeiro, mas do segundo; surgiu através da fofoca. Falar pelas costas pode parece uma ação negativa, mas graças a isso os sapiens podiam comunicar perigos e compartilhar planos. Segundo o autor, porém, a característica mais importante da nossa linguagem é sua capacidade de transmitir informações imaginadas. A capacidade de criar ficções é uma das grandes responsáveis pela vitória do sapiens sobre as demais espécies. Isto porque permite que sejam inventados mitos e ritos, que garantem a cooperação de muitos indivíduos em prol de um mesmo objetivo. Quando os animais cooperam entre si pela sua sobrevivência, fazem isso através da intimidade. Confia-se em quem se conhece e coopera-se através da confiança. Quando os sapiens criam seus mitos, eles mudam o critério de cooperação que já não depende mais da confiança naqueles que se conhece intimamente, o que seria impossível em grande número.
Essas ficções não se referem apenas aos mitos e ritos religiosos, mas também aos mitos e ritos sociais e institucionais. O autor cita como exemplo “a lenda da Peugeot”, umas das primeiras “empresas de responsabilidade limitada” (ou corporação), que apenas é possível pela crença nas ideias modernas – que concebem instituições como descoladas (e independentes) daqueles que as possuem, que trabalham nela, que investem nela. Os sapiens vivem, portanto, desde a Revolução Cognitiva, numa “realidade dual”: de um lado a realidade objetiva; de outro a imaginada (p.41).
Além de possibilitar a cooperação em grande número pela capacidade de criar ficções, a forma peculiar de linguagem dos sapiens também permite a mudança deliberada e rápida da forma de cooperação. Enquanto que para a mudança do comportamento dos animais em geral – que depende quase totalmente do que está impresso em seu DNA – levam-se milhares de anos, os sapiens precisam apenas mudar ou aperfeiçoar suas ficções para alterar rapidamente seu comportamento. Desta maneira, foi possível transmitir informações ao longo das gerações, que independem da herança genética. A Revolução Cognitiva é, assim, o ponto em que a história se separa da biologia (p.46).
Para entender nossa própria existência é necessário, segundo o autor, entender como nossos ancestrais caçadores-coletores viviam. Considerando a interpretação de diversos pesquisadores, eles eram seres marginais, muito diferentes entre si, tendo estruturas sociais, línguas, normas e valores diferentes de acordo com os diferentes grupos; eram aventureiros, comercializaram objetos de maneira meramente esporádica, se movendo de acordo com as mudanças climáticas, com a migração de animais e com o crescimento de plantas. Estavam longe de ser um risco para os outros animais e para o meio ambiente. Mas eles evoluíram rápido na cadeia alimentar, antes que seu psicológico tenha tido tempo para produzir a coragem que os grandes predadores adquiririam ao longo de sua evolução; viviam da coleta de insetos e carcaças de animais já abatidos por predadores maiores. Enquanto os outros animais da cadeia evoluíam gradualmente, permitindo que as espécies se adaptassem e balanceassem os danos, os sapiens evoluíram rapidamente – não dando tempo ao ecossistema à sua volta para se alinhar; e, ao mesmo tempo, conservando medos e ansiedades. E “sendo diferentes entre si, enquanto algumas áreas e períodos podem ter desfrutado de paz e tranquilidade, outros possivelmente foram dilacerados por conflitos violentos” (p.70).
Na maioria dos lugares, os sapiens se alimentavam mais da coleta do que da caça. Eles, na procura de alimento acabavam encontrando também conhecimento, já que para aperfeiçoar a colheita e não morrer envenenado era necessário conhecer bem a floresta. Eles eram hábeis e tinham o corpo flexível; trabalhavam o suficiente para se alimentar, sobrando tempo para outras atividades. Enquanto nas nossas sociedades as pessoas trabalham em média 40 a 45 horas por semana, e em países em desenvolvimento de 60 a 80 horas por semana, nossos ancestrais trabalhavam de 35-45 horas por semana; “caçavam uma vez a cada três dias, e a coleta levava não mais do que de três a seis horas”, o suficiente para alimentar o bando (p59). Sua alimentação variada garantia que tivessem sempre alimento, estando menos sujeitos a sofrerem pela perda de um alimento específico.
Eles também eram menos afetados por doenças por que tinham um estilo de vida mais higiênico e porque não conviviam com animais domésticos que transmitem doenças como a varíola, sarampo e tuberculose, mas apenas com cães, imunes a esses males. Quanto a sua dimensão mental e espiritual, a maioria dos acadêmicos concorda sobre sua crença no animismo: todo lugar, animal, planta e fenômeno natural possui consciência e sentimentos, podendo comunicar-se com os humanos (p.63). Portanto, não havia a noção de deuses universais, como é possível ver hoje. Cada lugar tinha suas próprias entidades.
Entretanto, não devemos idealizar estes povos antigos. Sua realidade também podia ser bem cruel. A mortalidade infantil era alta, períodos de privação não eram raros e os membros de um bando podiam ser bastante hostis com os desafortunados, levando-os a uma vida miseravelmente dolorida. Na verdade, devemos encarar estes povos como dotados de complexidade, não sendo nem anjos nem demônios, mas tão humanos quanto somos. Os bandos errantes de sapiens caçadores-coletores contadores de histórias, antes mesmo da Revolução Agrícola, foram uma das forças mais importantes e destrutivas que o reino animal já produziu (p.72).
Antes da Revolução Cognitiva todos os Homo viviam no continente afro-asiático. A Terra era dividida “em vários ecossistemas distintos, cada um deles composto de um conjunto singular de animais e plantas” (p.73). Depois da Revolução Cognitiva os sapiens saíram de casa e passaram a colonizar outros territórios. O primeiro foi o da Austrália, há cerca de 45 mil anos, período em que desenvolveram os primeiros assentamentos permanentes e as primeiras sociedades de marinheiros, base do seu “empreendimento transoceânico” (p 57), em áreas próximas de rios e mares – abundantes em alimento.
Assim que chegaram ao litoral australiano, os sapiens subiram ao topo da cadeia alimentar e daí à condição de “espécie mais mortífera do planeta” (p.74). Destruíram pequenos e grandes: “das 24 espécies animais australianas pesando 50 quilos ou mais, 23 foram extintas”, o que “incluía um canguru de 200 quilos e 2 metros e um leão-marsupial, grande como um tigre moderno, que foi o maior predador do continente” (p.75). Ainda que se tente atribuir a culpa da extinção de diversas espécies a mudanças climáticas e desastres naturais, “o registro histórico faz o Homo sapiens parecer um assassino em série da ecologia” (p.77).
Através do controle sobre o fogo e o poder de queimada, os sapiens puderam criar vantagem sobre os grandes predadores nos locais em que chegavam, o que alterou todo o habitat. Ainda que também tenha havido mudanças climáticas importantes, o Homo sapiens foi o que impediu que o ecossistema se realinhasse e que diversas espécies de animais e plantas sobrevivessem.
Este aventurar-se diz muita coisa sobre o desenvolvimento dos sapiens: enquanto os neandertais, mesmo que mais resistentes ao frio, optavam por lugares mais amenos e evitavam territórios de neve e gelo, os sapiens migraram para estes locais e passaram a desenvolver novas ferramentas, botas e roupas térmicas feitas de peles de animal, com técnicas de caça sofisticadas, que lhes permitiu abater grandes predadores do extremo norte. Da mesma forma, quando chegaram à América, abateram grandes predadores, tomando seu lugar na cadeira alimentar: Em apenas 2000 mil anos, nossa espécie extinguiu na América do Norte 34 de 47 gêneros de grandes mamíferos e na América do Sul, 50 de 60 (p.81). Ou seja, a primeira onda colonizadora dos Homo sapiens foi um dos maiores desastres ecológicos da história.
Na época da Revolução Cognitiva, o planeta abrigava cerca de 200 gêneros de grandes mamíferos terrestres pesando mais de 50 quilos. Na época da Revolução Agrícola, restavam apenas 100. O Homo sapiens levou à extinção cerca de metade dos grandes animais do planeta muitos antes de inventarem a roda, a escrita ou ferramentas de ferro” (p.82).
A primeira onda de extinção é, assim, o período da Revolução Cognitiva; a segunda, o da Revolução Agrícola; e a terceira, o da Revolução Industrial.
A Revolução Agrícola
Durante 2,5 milhões de anos os humanos viveram da coleta e da caça de animais selvagens. Há cerca de 10 mil anos passaram a manipular espécies de plantas e animais, espalhando sementes, livrando o solo de ervas daninhas, conduzindo ovelhas, etc., o que proporcionou aos humanos maior quantidade de frutas, grãos e carne. Essa revolução no modo de vida aumentou o total de alimentos de que os humanos dispunham, mas não necessariamente significava que tinham uma dieta melhor ou tempo excedente para o lazer.
O aumento dos alimentos disponíveis para o consumo resultou num aumento significativo da população, que morria muito, mas nasci mais; e um aumento do poder das elites; “um agricultor trabalhava mais que um caçador-coletor e obtinha em troca uma dieta pior. A revolução agrícola foi a maior fraude da história”. Segundo o autor, “as plantas domesticaram os Homo sapiens, e não ao contrário” (p.90). Neste período teve início também a domesticação de animais, que “se baseou numa série de práticas brutais que só se tornaram mais cruéis com o tempo” (p.102).
Os povos agrícolas dependiam de poucos alimentos, como o trigo, batata e arroz, muitas vezes de apenas um deles, o que levava à morte de milhões quando a colheita era destruída por pragas, por falta ou excesso de chuva. Quanto mais tempo se dedicavam à colheita, menos tempo tinham para agir como antes. Além disso, a sociedade agrícola não fornecia mais segurança. Estima-se que eram ainda mais violentos – já que tinham agora uma casa a defender.
A essência desta segunda revolução é a “capacidade de manter mais pessoas vivas em condições piores” (p.93). Com celeiros cheios e casas mais abastadas, atraiam-se mais perigos, o que demandava a construção de muros. Assim, como a história ensina, “os luxos tendem a se tornar necessidades e a gerar novas obrigações”, ansiedades e angústias (p.97). Esse truque do luxo nos mostra bem como a busca por uma vida mais confortável e tranquila acaba desencadeando ao mesmo tempo forças não planejadas que também se tornam poderosas e, assim, transformaram o mundo.
Os sapiens passaram a viver em “casas”, em pequenas estruturas de madeira, barro ou pedra, o que resultou num impacto psicológico importante, que faz da separação dos demais o “paradigma psicológico de uma criatura muito autocentrada” (p.108).
Enquanto os caçadores-coletores não pensavam muito sobre os dias que seguiriam, os agricultores passavam horas imaginando o futuro. Não pensar sobre o futuro poupava os primeiros de muitas ansiedades, já que não pensavam sobre o que não eram capazes de controlar. O medo da fome fazia com que os agricultores trabalhassem mais, de maneira a acumularem reservas para tempos difíceis. Porém, o que se vê na história é que os camponeses jamais foram recompensados pelo trabalho excedente, vivendo com o mínimo para sua subsistência e tendo seu trabalho excedente apropriado pelas elites. – Aqui podemos ver uma análise que corrobora as noções de história e mais valia desenvolvidas por Karl Marx.
Mas a divisão dos alimentos e sua escassez relativa não foram a razão dos grandes conflitos. O maior motivo das guerras e calamidades que envolvem nossa raça foi a diminuição do senso de cooperação. Assim como no caso da Peugeot, o Código de Hamurabi, datado de cerca de 1776 a.C. e a Declaração da Independência dos EUA, de 1776 d.C., servem como um manual de cooperação, e só ganham realidade pela crença dos franceses, babilônios ou americanos. No Código de Hamurabi é possível perceber a noção de ordem social babilônica, em que o princípio de hierarquia tem grande importância. Ele afirma que “a ordem social babilônica tem origem em princípios universais e eternos de justiça ditados pelos deuses” (p.115).
Tanto um quanto outro afirma que será garantida a paz e a segurança, com justiça e prosperidade, se os humanos cooperarem eficazmente segundo os princípios sagrados de que se constituem os documentos. Estes princípios não se referem a nada objetivo. São princípios que os humanos inventaram. O que cientificamente descreve-se como um processo evolutivo sem propósito – a existência e o desenvolvimento humanos – é traduzido como criação divina que inclui normas e princípios universais. Assim, a crença numa ordem imaginada não é algo em si maléfico, pernicioso e enganador; é o que possibilita a cooperação em grande número. Os mitos e ficções criaram uma rede de “instintos artificiais“, chamada de “cultura” (p171). Para garantir que as pessoas continuem acreditando em algo é necessário trabalho e esforço. Muitas vezes isto inclui violência e coerção; e requer principalmente que algumas pessoas realmente acreditem nos mitos coletivos, como os investidores e banqueiros, os membros da elite, do exército.
As ciências humanas, na tentativa de explicar como a ordem imaginada se sustenta, propõem três principais fatores: Esta ordem está arraigada ao mundo material, ela define nossos desejos; e ela é intersubjetiva. Ou seja, a estrutura social e material é constituída a partir dos mitos religiosos e institucionais – como, por exemplo, a disposição dos cômodos em uma casa ou numa instituição; nossos desejos partem do que cada sociedade – e assim, seus membros – vivencia, idealiza, valoriza, acha bonito; e acontece de maneira coletiva, conectando as consciências através da comunicação constante e inevitável.
Da mesma maneira que se pode criar uma ordem imaginada que oprima boa parte dos membros de um grupoHomo, também se pode criar algum tipo de ordem imaginada em que os indivíduos tenham direitos intrínsecos, que não devem ser suprimidos pelos demais indivíduos e grupos – como concebe o liberalismo – isto é, “não há como escapar da ordem imaginada” (p.126), quando se foge de uma concepção de mundo imaginada, busca se, na verdade, outra.
A capacidade de imaginar e criar regras também é importante porque a memória humana não é infinita. Com a Revolução Agrícola e a complexificação das sociedades, a invenção dos números foi crucial para preservar e organizar grandes territórios. Eram necessários dados matemáticos para administrar a coleta de impostos, de acordo com o número de pessoas, etc., o que cérebro algum seria capaz de armazenar.
Os sumérios foras os primeiros a superar os limites do cérebro humano, criando um sistema de processamento de dados conhecido como “escrita”, que combina símbolos. O impacto mais relevante da invenção da escrita é que ela mudou a forma como os humanos concebem o mundo. Enquanto no cérebro, os dados são associados livremente (p.137) – numa conversa a gente começa falando de uma coisa e termina falando de outra completamente diferente – os dados armazenados através da escrita se dão de maneira compartimentada e burocrática, cada coisa na sua caixa; isto nos tornou mais “calculistas”, não no sentido pejorativo, no sentido matemático.
As hierarquias, muitas vezes expressas como resultados de leis naturais, estão também sustentadas em mitos. Assim, as ideias de pureza e contaminação, de inferioridade e superioridade natural – que se daria no próprio cérebro – que sustentam os preconceitos raciais (até os dias de hoje) também o são. “A maioria das hierarquias sociopolíticas carece de base lógica ou biológica – elas não passam de perpetuação de eventos ocasionais sustentados por mitos” (p.151).
É também produto da imaginação humana a divisão entre homens e mulheres ou há de fato diferenças naturais/biológicas? O que é mais consensual nas discussões científicas é que sexo é definido biologicamente e há ai uma divisão natural, uma diferenciação natural, “mas “homem” e “mulher” são categorias sociais (culturais)” (p.156) – é por isso que muitos homens passam a vida inteira ou até morrem tentando provar que são homens e não apenas sendo-o. Além disso, enquanto as características biológicas do sexo se mantiveram relativamente as mesmas ao longo do desenvolvimento humano, as características dos gêneros (masculino e feminino) são intersubjetivas e mudam constantemente. Ainda assim, a estrutura social patriarcal “tem sido a norma em quase todas as sociedades” pós Revolução Cognitiva (p.161). Entretanto, , as formas dos gêneros e a própria cultura em geral mudaram bastante, seja pelo contato com outras culturas ou por transições decorrentes da dinâmica no interior destas culturas. Enquanto as leis da física são consistentes e resistem a mudanças, toda ordem criada pelos humanos é cheia de contradições internas, as quais a cultura tenta conciliar.
Por exemplo, os ideais liberais de igualdade e liberdade são contraditório: “a igualdade só pode ser assegurada se forem diminuídas as liberdades” (p172). Desde 1789, porém, nossa cultura tenta superar esta contradição. Esta é uma característica essencial a qualquer cultura: a dissonância cognitiva. Ou seja, todo ser humano, como membro de uma cultura, tem crenças contraditórias e valores incompatíveis; e se as pessoas não fossem capazes de tê-lo, a construção e manutenção de qualquer cultura seria provavelmente impossível.
O fluxo constante em que as culturas humanas estão não é totalmente aleatório. Se olharmos numa perspectiva panorâmica que considera décadas ou séculos, não podemos dizer exatamente se a história avança no sentido da unidade ou da diversidade, visto que culturas desaparecem, mas outras surgem. Mas se olharmos com vistas em milênios ao invés de séculos, veremos que a história caminha nitidamente em direção à unidade. Durante a maior parte da história, havia mundos humanos distintos, que coexistiam isolados. A América e a Europa, por exemplo, foram mundos se desconheciam durante a maior parte da história. Por volta de 10000 a.C. havia milhares de mundos isolados coexistindo no planeta, em 2000 a.C. caiu para centenas, em 1450 d.C. caiu ainda mais. Estes mundos pouco a pouco passaram a se conectar por laços culturais, políticos e econômicos.
Pouco antes do período das Grandes Navegações, a Terra estava 90% já conectada vivendo em um único megamundo: a Afro-Ásia. Os 10% restante se referem a outros 4 mundos ainda não conectados: o mesoamericano, o andino, o australiano e o oceânico. Nos 300 anos que seguiram “o gigante afro-asiático engoliu todos os outros mundos” (p.177), um processo demorado, mas irreversível. Hoje, quase o mundo inteiro compartilha o mesmo sistema geopolítico (Estados independentes), o mesmo sistema econômico (capitalista), o mesmo sistema jurídico democrático (ao menos em teoria) e o mesmo sistema científico.
O processo de unificação global teve seu estágio mais importante nos últimos séculos, quando os povos afroasiáticos, americanos, australianos e oceânicos formaram ligações cada vez mais próxima. Mas ideologicamente o passo mais importante se deu antes, durante o primeiro milênio antes de Cristo, quando surge a ideia de uma ordem universal que governaria o mundo inteiro. Neste período surgiram três ordens que podiam unir o mundo inteiro pela primeira vez: as ordens comercial, imperial e religiosa.
O desenvolvimento do dinheiro foi uma revolução mental, uma nova realidade imaginada, intersubjetiva e que não exige nenhum progresso tecnológico. O dinheiro é um meio universal de troca que, por sua capacidade de converter, armazenas e transportar riqueza, contribuiu de maneira crucial para o desenvolvimento e ampliação das redes de comércio. Ele funciona “convertendo matéria em espírito” (p.187); é um “sistema de confiança mutua” mais do que um bem material. Durante muito tempo as moedas eram feitas de produtos dotados de valor intrínseco (valor de uso) e, segundo o autor, o avanço mais importante na história monetária se deu quando os humanos passaram a confiar em um dinheiro sem valor inerente (valor –apenas – de troca), de valor apenas cultural. Por mais pernicioso que pareça, o dinheiro é também o “apogeu da tolerância humana” (p.193), transcendendo as barreiras étnicas, religiosas, da linguagem, dos códigos culturais – as diferenças não importam, todos querem dinheiro. O dinheiro permitiu, assim, que diversos estranhos cooperassem. Entretanto, contribuiu para a corrosão de tradições, de relações íntimas e valores humanos, substituídos pelas frias leis da oferta e procura.
Os impérios, por sua vez, reduziram drasticamente a diversidade humana, conquistando povos, apagando suas características singulares e formando grupos novos e maiores a partir deles. Ainda que hoje sofra severas críticas, “o império foi a forma mais comum de organização política do mundo nos últimos 2,5 mil anos” (p.198), o que significa que por muito tempo se fez eficaz. Muitos dos descendentes dos povos conquistados passaram a aprender e a se sentir membros da cultura de seus conquistadores. Além disso, as elites dos impérios usaram as riquezas expropriadas para financiar não apenas forças de coerção, mas também a filosofia e a arte, a justiça e benevolência. Não devemos, assim, esquecer que o desenvolvimento da cultura de que fazemos parte e “uma proporção significativa de grandes realizações culturais da humanidade deve sua existência à exploração das populações conquistadas”- gostemos ou não, o fato é esse.
Segundo o autor, a evolução nos fez xenofóbicos; sempre nos dividimos entre “nós” e “eles”; a alteridade sempre foi um problema. O imperador Ciro, por volta de 550 a.C., foi o primeiro que desejou governar todo o mundo na justificativa de que para o bem de todos, como numa família, sendo atém mesmo benevolente com seus súditos. De Ciro pra frente, o que inclui Alexandre Magno, a ideologia imperial passaria a ser, em sua maioria, inclusiva e universal, em passa a existir apenas “nós” (p.204).
Ao invés de principados independentes, os imperadores passaram a buscar a reunificação e a padronização – uma cultura comum – que lhes traria grandes vantagens: seria muito difícil dominar um território em que cada um falasse uma língua e possuísse normas e valores distintos (muitas vezes conflitantes). Além disso, lhes facilitava a obtenção de legitimidade, pois tinham como pretexto disseminar uma suposta cultura superior, que as próximas gerações de povos conquistados passariam a encarar como sua. Os impérios acabaram se tornando híbridos, mantendo características de culturas dominadas e destruindo outras.
A religião, terceiro elemento unificador, é definida pelo autor como um “sistema de valores humanos que se baseia na crença em uma ordem sobre-humana (...) que não é produto de caprichos ou acordos humanos”, tendo legitimidade inquestionável (p.218); desta maneira ela estabelece regras, normas e valores obrigatórios. Para unir grandes territórios em uma única religião é necessário que esta sustente uma “ordem sobre-humana abrangente”, que seja considerada verdade em qualquer lugar, além de missionária e universal. Foi apenas a partir de 1000 a.C. que surgiram as religiões missionárias, o que representou uma das revolução mais importantes da história, contribuindo para a unificação e para o surgimento dos impérios e do dinheiro universais.
No animismo tendia-se a uma perspectiva local, considerando-se a perspectiva e os interesses de diversos seres, como plantas e fantasmas, e as características singulares de cada lugar específico. As religiões missionárias, por sua vez, tinham as plantas e animais como propriedades, não como espíritos dotados de valor e vontade própria. Na perspectiva animista os humanos são apenas criaturas como qualquer outra que habita o mundo. Na revolução religiosa surgem outras concepções de mundo, inicialmente o politeísmo e em seguida, derivado deste, o monoteísmo. O politeísmo supõe que o “poder supremo que governa o mundo é destituído de interesses e inclinações e, portanto,” não se preocupa com as questões humanas (p.222), o monoteísmo concebe um poder supremo universal que governa todo o mundo em prol da humanidade.
O politeísmo deu origem a diversos monoteísmos locais, que não foram capazes de condensar sua mensagem de maneira a expandir seus membros. O salto se dá com o cristianismo. Entre as religiões politeístas há mais tolerância, visto que é possível considerar legítimos diversos deuses ao mesmo tempo, as religiões monoteístas tendem a ser mais fanáticas, pois implicam a legitimação de apenas um deus supremo. Além de dar origem a religiões monoteístas, o politeísmo gerou também religiões dualistas, em que o universo se divide entre o bem e o mal – forças independentes e dotadas de vontade própria. Enquanto os monoteístas explicam a existência do mal, do sofrimento, da desgraça como a maneira encontrada por Deus para que tivéssemos livre arbítrio, os dualistas afirmam que o mundo não é governado apenas por um deus bom, mas também por um mau. O importante aqui é dizer que o monoteísmo que conhecemos hoje é, na verdade, uma mistura dos legados monoteísta, dualista e politeísta “sob um único conceito divino” (p.231). O cristão em geral acredita no Deus monoteísta, no diabo dualista, em santos politeístas e fantasmas animistas. Um verdadeiro sincretismo – aceitação simultânea de ideias diferentes.
Há também, a partir do primeiro milênio a.C. religiões baseadas na crença em uma ordem sobre-humana que governa o mundo, que é produto, não de vontades e caprichos divinos, mas de leis naturais. Nossa Era viu surgir diversas religiões baseadas em leis naturais, como o liberalismo, o comunismo, o capitalismo, o nazismo; ainda que seja difícil para muitos vê-los dentro desta categoria. A diferença aqui é apenas quanto ao que se crê. As religiões teístas são baseadas no culto aos deuses e as religiões humanistas cultuam a humanidade; religiões teístas creem em bíblias, alcorões, mantras. Religiões humanistas creem nos direitos humanos, nas forças do mercado, na revolução do proletariado. Tanto o humanismo liberal quanto o socialista se baseia no monoteísmo, já que vê todos os humanos como iguais, como uma “versão renovada da convicção monoteísta de que todas as almas são iguais diante de Deus” (p.240). Todo nosso sistema (jurídico e político liberal) é baseado na crença em um indivíduo intrinsecamente sagrado, indivisível, fonte de toda autoridade ética e política (p.245).
O Nazismo, influenciado pela teoria da evolução, foi a única seita humanista a romper de fato com a perspectiva monoteísta: nele, a humanidade não é uma ordem eterna e universal, mas passível de degeneração ou evolução, cabendo a eles garantir que ela não se degenerasse na mistura com outras raças. Para eles, quando o liberalismo e o comunismo propõem o cuidado e a assistência aos mais fracos, eles permitem que estes “degenerados” sobrevivam, se reproduzam e “infestem” a humanidade – tornando-a geração a geração cada vez mais inapta para garantir sua própria sobrevivência como espécie.
Assim, o comercio, os impérios e as religiões universais fizeram da humanidade, quase em sua totalidade, uma sociedade global. Esse processo de transformação não foi linear, tão pouco ininterrupto. Neste livro não se pretende explicar porque isso aconteceu, e sim “reconstruir a série de acontecimentos específicos que levaram de um ponto a outro” (247), de maneira, portanto, descritiva. Busca-se fugir a determinismos, que concebam nosso mundo objetivo e nosso mundo imaginário como um resultado natural e inevitável da história. Por mais que as forças da natureza criem limites, há muito espaço para surpresas, que não se relacionam com nenhuma lei determinista; a história é caótica, contém forças e interações complexas, produzindo diferença e fugindo a previsões. Assim, “estudamos história não para conhecer o futuro, e sim para ampliar nossos horizontes, entender que nossa situação presente não é natural nem inevitável e que, consequentemente, existem mais possibilidades diante de nós do que imaginamos” (p.250). Seguindo as premissas do autor, as escolhas feitas ao longo da história não têm como fim o bem da humanidade. Não há provas de que estas escolhas tenham melhorado a vida dos humanos, inclusive porque não são escolhas sempre conscientes.
Na abordagem “memética” a cultura é vista como um parasita mental, que tem os humanos como hospedeiros. Da mesma maneira que a evolução orgânica se baseia na replicação de “unidades de informação orgânica” – os genes -, a evolução cultural “é baseada na replicação cultural de unidades de informação cultural chamada ‘memes”. As culturas que conseguem se sobressair na reprodução de seus memes, independentemente do que isto cause aos humanos, são bem-sucedidas.
Os pensadores pós modernistas, no lugar de “memes” colocam “discurso”, mas também acreditam que a cultura se propaga sozinha, sem preocupação com os interesses humanos, o que também se considera na “teoria dos jogos”. Em nenhum dos casos os indivíduos sozinhos possuem consciência e capacidade de mudar deliberadamente a história.
A Revolução Científica
A Revolução Cientifica se refere ao processo histórico que levou à bomba atômica e à Lua. Neste momento os humanos se tornaram capazes não apenas de mudar o curso da história, mas de dar um fim a ela. Em cerca de 500 anos a população humana cresceu 14 vezes, a produção cresceu 240 vezes e o consumo de calorias, 115 vezes.
. Antes da Revolução Científica a preocupação dos governantes era por legitimação de poder e ordem social, não descobertas em medicina, armas ou crescimento econômico. Sem altos investimentos por parte das elites e dos governos não teria sido possível revolucionar o mundo mais uma vez. Essa revolução dependeu do reforço mútuo entre ciência, política e economia (p.260).
Desde a Revolução Cognitiva os humanos tentam entender o universo e desenvolveram diversas formas de conhecimento que o tornam inteligível. Mas a ciência moderna se diferencia de todas as tradições de conhecimento que a antecedem em três pontos decisivos: disposição para admitir ignorância; utilização de ferramentas matemáticas para a estruturação de teorias abrangentes; e aquisição de novas capacidades (tecnologias).
Nas tradições de conhecimento antigas só se admitiam dois tipos de ignorância. A primeira se refere a algo que alguém não sabe, mas pode perguntar a alguém que saiba mais – um sábio; não havia algo que ninguém soubesse e deveria ser descoberto. A segunda se refere ao que não tem importância e uma tradição inteira pode ignorar algo que, segundo os deuses, não é relevante. O estudo das espécies de animais e plantas, por exemplo, não tinha importância para os antigos, pois não era relevante para suas “verdades eternas”.
A disposição cientifica para admitir ignorância permitiu que os humanos questionassem as premissas básicas da vida e buscassem evidências que as comprovassem. Isto não significa, porém, que, comprovada sua ignorância, eles perderam sua disposição para acreditar em mitos. Para que continuemos cooperando, seguimos acreditando em alguma ordem imaginada.
De acordo com os cientistas, nenhuma teoria é totalmente correta, mas o que importa é sua utilidade. Se ela permite fazer coisas novas, é considerada conhecimento. A relação entre ciência e tecnologia, por exemplo, é recente. Nas guerras da antiguidade não havia grandes diferenças tecnológicas e as guerras eram vencidas na estratégia, o que perdurou até o século XVI, mas que só realmente mudou 200 anos depois, quando a ciência, a indústria e a tecnologia militar se entrelaçaram.
Até este momento a maior parte da humanidade via seu melhor momento no passado, e o presente como estagnado ou em decomposição. Com as descobertas da ciência, a ideia de progresso passa a habitar o imaginário dos indivíduos. E, de fato, em alguns aspectos a ciência trouxe avanços: por mais degradante que a vida de muitos seja, poucos estão de fato morrendo de fome – como ocorria frequentemente em outros períodos -, “na verdade, em muitas sociedades há mais pessoais correndo o risco de morrer de obesidade do que de fome” (p.276).
A maioria de suas pesquisas é financiada por quem busca nelas um meio para alcançar fins políticos, econômicos e religiosos. Apoiada em ideologias e crenças, as pesquisas científicas são incapazes de estabelecer sua própria agenda. A ideologia justifica seus custos, suas prioridades e de que maneira serão usadas suas descobertas. Nos últimos 500 anos o imperialismo, o capitalismo e a ciência – num ciclo de retroalimentação – constituíram o motor da história. A Europa, ao desenvolver a ciência moderna e o capitalismo, conseguiu dominar o mundo com rapidez.
O imperialismo Europeu foi diferente de todos os outros porque considerava a ignorância e detinha o ímpeto da descoberta e da conquista, tendo em mente que o conhecimento adquirido os tornaria senhores do mundo. Durante a maior parte da história os mapas eram preenchidos por completo, como se não houvesse nenhum lugar que o homem não conhecesse e pudesse nomear. A partir do século XVI os europeus passaram a desenhar mapas do mundo com diversos espaços vazios.
A descoberta da América foi o acontecimento fundacional da Revolução Científica. Não apenas ensinou os europeus a preferirem observações presentes a tradições passadas, mas o desejo de conquistar a América também obrigou os europeus a buscarem novos conhecimentos o mais rápido possível. Se eles quisessem controlar os novos territórios, precisariam coletar uma enorme quantidade de dados sobre a geografia, o clima, a flora, a fauna, as línguas, as culturas e a história do novo continente. As Escrituras cristãs, os velhos livros de geografia e as antigas tradições orais eram de pouca ajuda” (p.298).
Assim, as expedições europeias conectaram todos os continentes, criando uma rede de colônias e estabeleceram a primeira rede de comércio global. Desta maneira transformaram a história do mundo: de culturas isoladas com histórias próprias, à história de “uma única sociedade humana integrada” (p.299).
A Europa não desfrutava, entretanto, de qualquer vantagem tecnológica para tanto. O que tornou possível a conquista do mundo foi sua ambição. Somente no século XX outras culturas foram capazes de adotar uma visão realmente global. Foi assim que, fazendo de uma batalha local uma causa global, os vietnamitas derrotaram os norte-americanos, por exemplo – mobilizando forças anti-imperialistas externas, manipulando a opinião pública global.
Através de seu ímpeto ao mesmo tempo científico e conquistador os britânicos decifraram a escrita cuneiforme, que por muitos anos se manteve um enigma. As novas descobertas e os avanços que propiciaram contribuíram para que os indivíduos acreditassem (e continuem acreditando) que o progresso é bom e, assim, o império que o promove: garantindo legitimidade pela justificação ideológica. A ciência forneceu ao império o conhecimento, as justificativas e (futuramente) as tecnologias necessárias para que explorassem e conquistassem o mundo.
Não se pode, porém, atribuir aos impérios rótulos simplificados como bons e maus: tanto há evidências que os faz parecer benéficos, quando as que os faz parecer terríveis. O mundo como conhecemos foi criado sobre suas bases, “incluindo as ideologias que usamos para julgá-los” (p.311). Além disso, a ciência foi financiada por outras instituições, assim como os impérios também não cresceram apenas com o apoio da ciência; “por trás da ascensão meteórica, tanto da ciência quanto do império, espreita uma força particularmente importante: o capitalismo” (p.314).
Neste ponto voltamos ao aspecto humano que permeia todo o texto: nossa capacidade de imaginar e cooperar a partir de ficções. Como num passe bancário de mágica um milhão de reais de um cliente, emprestado para outro cliente, que passa a dever em juros, entre outras transações se transformam em três milhões. O dinheiro e o sistema econômico em que ele exerce tão importante papel, os bancos que emprestam dinheiro que não é deles, multiplicando o capital de maneira nunca antes imaginada, dependem da confiança. A própria noção de crédito permite “construir o presente à custa do futuro” (p.318), acreditando na noção de progresso, que levará a mais bens, recursos, tecnologias, confortos. O crédito já existia antes, mas não era comum confiar que o futuro seria muito melhor, se não fosse pior. Em razão disso não era comum que se concedesse muito crédito.
Tinha-se a ideia de um total de recursos limitado e que, por exemplo, se eu colho todas as maças de uma macieira, terei comido a parte de alguém. Por este motivo, muitas culturas consideram o luxo algo pecaminoso, fazendo com que as pessoas doem excedentes para a caridade. A partir desta limitação cultural do crédito, pouco se empreendia, impedindo o crescimento dos negócios e da economia, reforçando a ideia de que o futuro não seria muito diferente: “a expectativa da estagnação se retroalimentava” (p.320).
Com a Revolução Científica vem a ideia de progresso, que pressupõe a crença na possibilidade de aumento das riquezas e dos recursos a partir das descobertas científicas. Essa ideia fortaleceu a confiança no futuro, que gerou crédito, trazendo crescimento econômico, que por sua vez fortaleceu a confiança, que fomentou o crédito.
Na Teoria de Adam Smith em A Riqueza das Nações, a ideia de ser rico não é mais vista como um pecado, pois não se enriquece tomando todos os frutos de uma macieira – prejudicando seus vizinhos, mas plantando mais macieiras e aumentando o todo de que usufruem, beneficiando também os demais. Nesta visão, os ricos são vistos como pessoas úteis e benévolas, já que impulsionam o crescimento da sociedade.
O capitalismo começou como uma doutrina econômica; era ao mesmo tempo descritivo e prescritivo: se referia ao funcionamento do dinheiro e dos lucros produzidos pelo investimento e reinvestimento na produção. Hoje, ele abrange também a forma como as pessoas pensam e educam seus filhos. No modo capitalista de vida o crescimento econômico é um “bem supremo”, já que dele dependem a liberdade, a segurança e o conforto.
O sistema de crédito capitalista surgiu graças ao imperialismo europeu, ainda que a ideia de crédito tenha sido desenvolvida muito antes. Embora os europeus, até o fim do século XVIII, tivessem menos capital à disposição do que os chineses, muçulmanos e indianos, e no começo não contassem com investimentos por parte dos reis e generais; com a chegada das elites de comerciantes, banqueiros e seu modo de pensar mercantil, foi possível o aumento do investimento, o aumento das descobertas, que levaram a novos investimentos
Colombo, em 1484 na sua empreitada que levaria à “descoberta” da América, pediu financiamento ao rei de Portugal, que lhe foi negado, tendo em vista todos os riscos de fracasso daquela aventura. Ele então buscou apoio a outros potenciais investidores na Itália, França e Inglaterra. Só teve sucesso através da Rainha Isabel, que governava a Espanha recém-unificada.
A “descoberta” da América com todos os recursos de que dispunha e todos os caminhos que iluminava levaram ao aumento da confiança e o fortalecimento do sistema de crédito, que gerou um crescimento econômico impressionante em várias metrópoles capitalistas. Mas a confiança no crédito – e no futuro melhor, podem levar a frustrações trágicas. O autor cita como exemplo a “bolha de Mississipi” (que você mencionou em uma conversa). (p.333-334)
O capitalismo pode levar à miséria de muitos, mas paradoxalmente o capital foge de países ditatoriais, que não garantem os direitos individuais e a segurança da propriedade privada. Portanto, o capital e a política se influenciam mutuamente e resultam em diversos debates sobre a legitimidade de sua interferência mútua. A doutrina do livre mercado, que prega a mínima atuação do Estado na Economia, é a variante dominante do credo capitalista atualmente. Mas esta crença beira à ingenuidade; sem regulação do mercado por parte dos governantes, que garante o mínimo de fairplay no jogo do mercado (vide o exemplo de Mississipi) perde-se confiança, crédito e, assim, deprime-se a Economia.
Além disso, é necessário algum órgão de proteção dos trabalhadores. O capitalismo aprofunda a desigualdade, já que não consegue “garantir que lucros sejam ganhos de forma justa, ou distribuí-los de maneira justa” (p.341); ainda assim, ele continua apostando no futuro, jurando que a solução dos problemas é questão de tempo e que a ciência é capaz de melhorar a vida humana.
O crescimento econômico, entretanto, depende não apenas de investimentos e confiança, mas de combustível e matérias-primas; sem isso todo o sistema desmorona. Esses recursos são relativamente escassos; nos últimos anos a ciência mudou essa realidade; “a Revolução Industrial foi uma revolução na conversão de energia” (p.349).
Durante a maior parte da história os corpos (de humanos e outros animais) eram o único “dispositivo de conversão de energia disponível” (p.344). Através da energia muscular os humanos realizavam suas tarefas e os animais domesticados as facilitavam. A energia solar era a grande fonte de energia do mundo; até que surgiu uma nova tecnologia que convertia calor em movimento: o motor a vapor. Antes a humanidade dependia da energia solar convertida pelas plantas - que eram a base da alimentação dos animais domésticos e humanos; Agora é possível a produção de energia e matéria prima abundante e barata como nunca se viu antes. Isso não significa uma cisão completa com a Revolução Agrícola, pelo contrário: “os métodos de produção industrial se tornam o sustentáculo da agricultura” (p.351). As máquinas substituíram humanos e animais. A mecanização do cultivo de plantas e a pecuária industrial constituem a base da ordem socioeconômica moderna.
Em quase todas as sociedades os camponeses representavam 90% da população, pois a maior parte da produção era usada para alimentar a eles próprios e aos animais domesticados, sobrando pouco para sustentar artesãos, professores, burocratas, operários e funcionários administrativos. Com a industrialização, menos agricultores eram necessários para alimentar a população como um todo, permitindo que as cidades se desenvolvessem. Com isso a população camponesa diminuiu e a urbana cresceu, junto com ela cresceu a produção industrial e a oferta de produtos. Pela primeira vez, a oferta supera demanda.
Inclusive, o capitalismo depende de um crescimento constante da produção e, obviamente, é necessário que as pessoas comprem os novos produtos. Como durante a maior parte da historia se viveu em situação de escassez de recursos, o desperdício e o luxo eram vistos com maus olhos, sendo a frugalidade a característica virtuosa do homem comum. O capitalismo precisou convencer as pessoas, mudar sua psicologia, para que vissem o esbanjar com bons olhos e que não sentissem culpa, mas orgulho ao consumir diversos produtos de que não precisam; instaurou uma ética consumista que permeia todo o consumo: vestuário, saúde, alimentação, etc.
Fator interessante da religião capitalista e consumista é que ela promete um paraíso mais fácil de alcançar do que o das religiões anteriores. Basta deixar que a ambição domine e a sociedade alcançará o progresso. Diante disso, a escassez pode ser uma preocupação equivocada, mas a destruição da natureza, ou sua transformação violenta, são um perigo real para humanidade.
Os sapiens, ainda que tenham se tornado “impermeáveis aos caprichos da natureza” (p.363), se tornaram cada vez mais dependentes das regras e valores que orientam os governos e as indústrias modernas. No passado os ciclos relativamente irregulares da natureza, o clima, as estações, etc. orientavam o dia-a-dia dos indivíduos. Na indústria moderna a precisão e uniformidade são fundamentais. Assim, o relógio se torna o regulador universal dos períodos produtivos. O cronograma da indústria passou a orientar o comportamento e as atividades humanas.
Os humanos tiveram que se adaptar à cultura das cidades, à diminuição da população camponesa, à democratização, entre outras novas realidades. De uma vida cotidiana em famílias, numa comunidade que existia com base em tradições locais e numa “economia de favores” (p.367), passou-se a viver de maneira mais autônoma e desconectada de tradições. O Estado e os mercados enfraqueceram vínculos familiares e colocaram em seu lugar a burocracia, a escola, os militares, a própria noção moderna de indivíduo autônomo. Para as mulheres, que antes eram (assim como as crianças) legalmente consideradas propriedades dos homens (pais e maridos) e destituídas de direitos, foi um avanço importante.
Mas esta liberdade individual não vem de graça, “milhões de anos de evolução nos projetaram para viver e pensar como membros de uma comunidade; em apenas dois séculos, nos tornamos indivíduos alienados (separados). Nada atesta melhor o poder incrível da cultura” (p.371). Ainda que a família não tenha desaparecido por completo da estrutura moderna, ela não manda no jogo. As fronteiras nacionais, da mesma forma têm menos importância, surgindo comunidades de consumidores que se distribuem pelos territórios nacionais.
. Antigamente as pessoas acreditavam menos na mudança porque não era tão possível percebê-las – elas aconteciam a longo prazo. A ordem social se tornou mais flexível; hoje tudo pode mudar do dia pra noite. Hoje, a característica mais visível da sociedade é a mudança incessante.
Destas mudanças bruscas e intermináveis podemos esperar consequências drásticas, entretanto é possível dizer, considerando os argumentos autor, que vivemos a época mais pacífica de todo o percurso humano. A diminuição da violência se deu através do Estado. Não se pode dizer com precisão se no interior dos Estados a violência diminuiu ou não, mas a violência entre Estados independentes, que resultaram em guerras mundiais, está em seu menor índice. Ainda que guerras aconteçam, elas não são a regra. Os estudiosos tentam explicar esse avanço identificando fatores que teriam contribuído para a pacificação: a guerra, tendo os sapiens em mãos a tecnologia nuclear, poderia destruir a humanidade; além disso, ela era cara e prejudicava acordos comerciais. O que concluiu o autor é que “estamos no limiar do céu e do inferno” (p385).
Nos últimos 500 anos a sociedade cresceu e mudou de maneira decisiva a política, a psicologia e o cotidiano. Mas os 70 milênios pós Revolução Cognitiva levaram a um mundo melhor para se viver? Os indivíduos são mais felizes? Os românticos acreditam que nossa percepção é mais pobre e desconectada, mas as evidencia mostram diversos avanços irrecusáveis, como os da medicina. Entretanto, esses avanços na sociedade humana não devem eclipsar o mal que isso representou para as demais espécies. Se foi um resultado feliz para os humanos, foi bastante infeliz para os animais, que também são passíveis de sentir dor.
A felicidade, um bem-estar subjetivo, não é facilmente mensurável; os biólogos sustem que nosso estado emocional é resultado de processos bioquímicos, por hormônios – não determinado por parâmetros externos, como a condição financeira, os direitos sociais, etc. Como nosso sistema bioquímico não mudou muito, não se pode dizer que somos nem mais nem menos felizes. Entretanto, o desenvolvimento de substancias que alteram nossa produção hormonal pode, de fato, nos fazer sentir mais felizes. Nesta visão felicidade e prazer são sinônimos.
Esta visão biológica da felicidade é contestada, porém, por outros estudiosos, que relacionam a felicidade à obtenção de um sentido para vida. Por mais difícil e desprazerosa que uma vida seja, ela pode gerar grande felicidade se estiver carregada de sentido, ao passo que mesmo uma vida fácil não representaria necessariamente mais felicidade se quem a vive não encontrasse um sentido para viver. A felicidade, nesta visão, depende da capacidade de encontrar um significado –imaginado – para a dor, para a morte, para o sofrimento.
Essas suas visões concebem a felicidade como um bem-estar subjetivo, em que ela é pensada de acordo com a perspectiva do indivíduo. É comum em nossos tempos ouvirmos e dizermos que “a felicidade só depende de nós mesmos; somos nós como indivíduos que devemos decidir o que é melhor para nós mesmos e o que nos fará mais felizes”. Não devemos esquecer, porém, que a sociedade nos impõe desde crianças quais são as concepções aceitas de felicidade; é a sociedade que dispõe de uma gama diversa de sentidos para a vida; é ela que constrói os limites dos nossos desejos aos quais devem se adaptar as nossas expectativas.
Mesmo que tenhamos nos diferenciado das outras espécies, estamos sujeitos a limites biológicos. Isto parece estar mudando desde o início do século XXI, quando nossa espécie começou a desafiar as leis de seleção natural, “substituindo-as pelas leis do design inteligente” (p.408). Isso começou já na Revolução Agrícola quando, ao cruzar deliberadamente espécies grandes e dóceis de galinhas, os humanos passaram a criar novas espécies de galinhas, produzidas, portanto, não pela natureza ou por algum deus, mas pelo design inteligente dos humanos. Hoje, os cientistas estão criando seres vivos em laboratórios, inexplicáveis pelas leis de seleção natural.
Com a tecnologia disponível faz sentido pensar que em pouco tempo poderemos criar novamente os mamutes extintos, os dinossauros, além de cyborgs, humanos “artificiais”, cura para diversas doenças, aumento das capacidades cognitivas e emocionais; e até mesmo ressuscitar os neandertais. Todos esses “avanços” têm como obstáculo as “objeções éticas e políticas que desaceleram as pesquisas com humanos” (p.415), que não poderão, porém, freá-las por muito mais tempo.
O futuro tem tudo para ser um verdadeiro Black Mirror. A mitologia científica de Frankenstein também representa bem as questões paradoxais de nossos tempos, em que se busca criar homens superiores, que provavelmente olhariam para os sapiens como um dia olhamos para os neandertais.
O importante para o autor é que “a próxima etapa da historia incluirá não só transformações psicológicas e organizacionais como também transformações sociais na consciência e na identidade humana” (p.424), o que poderá subverter o próprio conceito de “humano”. O que devemos nos perguntar, assim, é: o que gostaríamos de nos tornar? E como possivelmente poderemos mudar até mesmo nossos desejos, o que iremos querer? Há 70 mil anos nós éramos uma espécie insignificante, mas nos milênios seguintes alteramos todo o mundo ao nosso redor, nos tornamos deuses da criação e da destruição.
Diante de todas as possibilidades que criamos parece que estamos sempre insatisfeitos, uma das características que mais marcam a nossa existência. Ainda que sejamos excepcionalmente poderosos, não sabemos ao certo o que fazer com isso. E, conclui o autor, “existe algo mais perigoso do que deuses insatisfeitos e irresponsáveis que não sabem o que fazem?” (p.428).
Ao final desta incrível viagem pela história da humanidade, portanto, o autor nos convida a refletir sobre nosso futuro. Como afirmou Karl Marx, os homens fazer sua história, mas sem saber exatamente como. Nossa história de criação divina, à medida que nos tornamos deuses, e de destruição diabólica, que causamos de maneira inigualável, dependeu da nossa capacidade particular de cooperação. O que quer que tenhamos feito de nós e o que quer que venhamos a fazer, fizemos e faremos juntos.

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