Sapiens: Uma breve história da humanidade – Yuval Noah Harari
O
livro de Yuval Noah Harari,
Sapiens,
conta de que maneira nossa espécie foi transformada por três
Revoluções, determinantes no excepcional percurso da história
humana: as Revoluções Cognitiva, Agrícola e Científica.
Inseparáveis de toda esta história, as consequências para o
planeta e para a própria raça humana têm seu lugar de destaque na
narrativa, levando a uma reflexão final sobre os caminhos que levam
ao futuro.
Os
humanos (todas as espécies do gênero Homo – sapiens, erectus,
neandertais, etc.) surgiram há cerca de 2,5 milhões de anos na
África Oriental. Por volta de 2 milhões de anos, os sapiens
deixaram seu lar e se aventuraram rumo a outros territórios. Apesar
de nossas ideias equivocadas sobre algum tipo de linha de
descendência, há cerca de 50 mil anos diversas espécies do gênero
Homo viveram ao mesmo tempo e sem que houvesse grande vantagem de
umas sobre as outras; compartilhavam o mesmo ambiente, mas tendo
características já muito diferentes quanto às capacidades
cognitivas e habilidades sociais; umas eram maiores, outras, menores;
algumas eram mais dóceis, outras mais agressivas. Suas cabeças eram
maiores quando em comparação com outros animais, fazendo com que
passassem mais tempo em busca de alimento – pelo alto gasto
energético que o cérebro implica para funcionar. Além disso, seus
músculos atrofiaram pela transferência de energia dos músculos
para o cérebro.
O
controle sobre o fogo operou também mudanças cruciais no corpo dos
humanos. Consumindo alimentos cozidos, os humanos passavam menos
tempo digerindo-os, o que fez com que seu intestino diminuísse ao
longo do tempo, abrindo espaço para o gasto de mais energia com o
cérebro e seu maior desenvolvimento. O fogo também expandiu o poder
dos humanos para além de seu corpo – possibilitando o cozimento de
uma variedade de alimentos ou a destruição de toda uma floresta.
Outro
traço singular de nosso gênero é que andamos eretos, tendo as mãos
livres para nos defender e caçar de novas maneiras, para produzir
ferramentas, etc.; mas que tem suas desvantagens: Pagamos pela
adaptação da coluna ereta e um crânio aumentado “com dores nas
costas e rigidez no pescoço” (p.18). As mulheres
pagaram
ainda mais: o canal do parto ficou mais estreito e o parto mais
difícil. A seleção natural favoreceu nascimentos precoces, quando
a cabeça do bebê ainda era pequena, quando os sistemas vitais ainda
não estavam totalmente desenvolvidos. Isso aumenta a dependência em
relação aos demais e permite que o bebê possa ser moldado de
maneira que não se conseguiria fazer com nenhum outro animal.
Como
o sapiens evoluiu pela primeira vez não se sabe, mas os cientistas
concordam que por volta de 150 mil anos na África Oriental havia
sapiens exatamente como nós. Também concordam que há cerca de 70
mil anos, os sapiens se espalharam na península Arábica e de lá
chegaram rapidamente ao território da Eurásia, que em sua maior
parte já era ocupado por outros humanos. A teoria da “miscigenação”
e a teoria da “substituição” tentam explicar o que aconteceu no
encontro entre as espécies. A primeira tem como hipótese que as
espécies se cruzaram e se fundiram, o que também teria ocorrido na
Ásia Oriental, onde os sapiens encontraram os Homo erectus. A
segunda afirma que, na verdade, os Homo sapiens prevaleceram às
demais espécies, exterminando-as direta ou indiretamente (utilizando
seu potencial cognitivo para caçar todas as presas do território,
colher todas as frutas, etc.). Nas últimas décadas, a segunda
teoria foi mais aceita. Se a culpa da extinção das demais espécies
de humanos é culpa dos sapiens não se sabe com toda certeza, mas o
que se sabe é que “tão logo eles chegavam a um novo local, a
população nativa era extinta” (p.27).
A
Revolução Cognitiva
Há
cerca de 70 mil anos, a revolução cognitiva levou os sapiens a se
locomover com mais rapidez, a inventar barcos, lâmpadas a óleo,
agulhas, etc. Isso foi possível pela mudança nas formas de
pensamento e comunicação. Essa mudança, ocorrida entre 70 mil anos
e 30 mil anos atrás constitui a Revolução Cognitiva. De que
maneira os sapiens, que eram mais frágeis que os neandertais e
tantos outros animais conseguiram se tornar o maior de todos os
predadores? Segundo o autor, a resposta mais provável e que torna o
debate possível é: “graças à sua linguagem única”.
Nossa
língua é versátil, pode armazenar, consumir e comunicar uma
quantidade incrível de informação sobre o mundo físico e social.
Essa linguagem parece ter se desenvolvido não para falar do
primeiro, mas do segundo; surgiu através da fofoca. Falar pelas
costas pode parece uma ação negativa, mas graças a isso os sapiens
podiam comunicar perigos e compartilhar planos. Segundo o autor,
porém, a característica mais importante da nossa linguagem é sua
capacidade de transmitir informações imaginadas. A capacidade de
criar ficções é uma das grandes responsáveis pela vitória do
sapiens sobre as demais espécies. Isto porque permite que sejam
inventados mitos e ritos, que garantem a cooperação de muitos
indivíduos em prol de um mesmo objetivo. Quando os animais cooperam
entre si pela sua sobrevivência, fazem isso através da intimidade.
Confia-se em quem se conhece e coopera-se através da confiança.
Quando os sapiens criam seus mitos, eles mudam o critério de
cooperação que já não depende mais da confiança naqueles que se
conhece intimamente, o que seria impossível em grande número.
Essas
ficções não se referem apenas aos mitos e ritos religiosos, mas
também aos mitos e ritos sociais e institucionais. O autor cita como
exemplo “a lenda da Peugeot”, umas das primeiras “empresas de
responsabilidade limitada” (ou corporação), que apenas é
possível pela crença nas ideias modernas – que concebem
instituições como descoladas (e independentes) daqueles que as
possuem, que trabalham nela, que investem nela. Os sapiens vivem,
portanto, desde a Revolução Cognitiva, numa “realidade dual”:
de um lado a realidade objetiva; de outro a imaginada (p.41).
Além
de possibilitar a cooperação em grande número pela capacidade de
criar ficções, a forma peculiar de linguagem dos sapiens também
permite a mudança deliberada e rápida da forma de cooperação.
Enquanto que para a mudança do comportamento dos animais em geral –
que depende quase totalmente do que está impresso em seu DNA –
levam-se milhares de anos, os sapiens precisam apenas mudar ou
aperfeiçoar suas ficções para alterar rapidamente seu
comportamento. Desta maneira, foi possível transmitir informações
ao longo das gerações, que independem da herança genética. A
Revolução Cognitiva é, assim, o ponto em que a história se separa
da biologia (p.46).
Para
entender nossa própria existência é necessário, segundo o autor,
entender como nossos ancestrais caçadores-coletores viviam.
Considerando a interpretação de diversos pesquisadores, eles eram
seres marginais, muito diferentes entre si, tendo estruturas sociais,
línguas, normas e valores diferentes de acordo com os diferentes
grupos; eram aventureiros, comercializaram objetos de maneira
meramente esporádica, se movendo de acordo com as mudanças
climáticas, com a migração de animais e com o crescimento de
plantas. Estavam longe de ser um risco para os outros animais e para
o meio ambiente. Mas eles evoluíram rápido na cadeia alimentar,
antes que seu psicológico tenha tido tempo para produzir a coragem
que os grandes predadores adquiririam ao longo de sua evolução;
viviam da coleta de insetos e carcaças de animais já abatidos por
predadores maiores. Enquanto os outros animais da cadeia evoluíam
gradualmente, permitindo que as espécies se adaptassem e
balanceassem os danos, os sapiens evoluíram rapidamente – não
dando tempo ao ecossistema à sua volta para se alinhar; e, ao mesmo
tempo, conservando medos e ansiedades. E “sendo diferentes entre
si, enquanto algumas áreas e períodos podem ter desfrutado de paz e
tranquilidade, outros possivelmente foram dilacerados por conflitos
violentos” (p.70).
Na
maioria dos lugares, os sapiens se alimentavam mais da coleta do que
da caça. Eles, na procura de alimento acabavam encontrando também
conhecimento, já que para aperfeiçoar a colheita e não morrer
envenenado era necessário conhecer bem a floresta. Eles eram hábeis
e tinham o corpo flexível; trabalhavam o suficiente para se
alimentar, sobrando tempo para outras atividades. Enquanto nas nossas
sociedades as pessoas trabalham em média 40 a 45 horas por semana, e
em países em desenvolvimento de 60 a 80 horas por semana, nossos
ancestrais trabalhavam de 35-45 horas por semana; “caçavam uma vez
a cada três dias, e a coleta levava não mais do que de três a seis
horas”, o suficiente para alimentar o bando (p59). Sua alimentação
variada garantia que tivessem sempre alimento, estando menos sujeitos
a sofrerem pela perda de um alimento específico.
Eles
também eram menos afetados por doenças por que tinham um estilo de
vida mais higiênico e porque não conviviam com animais domésticos
que transmitem doenças como a varíola, sarampo e tuberculose, mas
apenas com cães, imunes a esses males. Quanto a sua dimensão mental
e espiritual, a maioria dos acadêmicos concorda sobre sua crença no
animismo: todo lugar, animal, planta e fenômeno natural possui
consciência e sentimentos, podendo comunicar-se com os humanos
(p.63). Portanto, não havia a noção de deuses universais, como é
possível ver hoje. Cada lugar tinha suas próprias entidades.
Entretanto,
não devemos idealizar estes povos antigos. Sua realidade também
podia ser bem cruel. A mortalidade infantil era alta, períodos de
privação não eram raros e os membros de um bando podiam ser
bastante hostis com os desafortunados, levando-os a uma vida
miseravelmente dolorida. Na verdade, devemos encarar estes povos como
dotados de complexidade, não sendo nem anjos nem demônios, mas tão
humanos quanto somos. Os bandos errantes de sapiens
caçadores-coletores contadores de histórias, antes mesmo da
Revolução Agrícola, foram uma das forças mais importantes e
destrutivas que o reino animal já produziu (p.72).
Antes
da Revolução Cognitiva todos os Homo viviam no continente
afro-asiático. A Terra era dividida “em vários ecossistemas
distintos, cada um deles composto de um conjunto singular de animais
e plantas” (p.73). Depois da Revolução Cognitiva os sapiens
saíram de casa e passaram a colonizar outros territórios. O
primeiro foi o da Austrália, há cerca de 45 mil anos, período em
que desenvolveram os primeiros assentamentos permanentes e as
primeiras sociedades de marinheiros, base do seu “empreendimento
transoceânico” (p 57), em áreas próximas de rios e mares –
abundantes em alimento.
Assim
que chegaram ao litoral australiano, os sapiens
subiram ao topo da cadeia alimentar e daí à condição de “espécie
mais mortífera do planeta” (p.74). Destruíram pequenos e grandes:
“das 24 espécies animais australianas pesando 50 quilos ou mais,
23 foram extintas”, o que “incluía um canguru de 200 quilos e 2
metros e um leão-marsupial, grande como um tigre moderno, que foi o
maior predador do continente” (p.75). Ainda que se tente atribuir a
culpa da extinção de diversas espécies a mudanças climáticas e
desastres naturais, “o registro histórico faz o Homo sapiens
parecer um assassino em série da ecologia” (p.77).
Através
do controle sobre o fogo e o poder de queimada, os sapiens
puderam criar vantagem sobre os grandes predadores nos locais em que
chegavam, o que alterou todo o habitat. Ainda que também tenha
havido mudanças climáticas importantes, o Homo
sapiens
foi o que impediu que o ecossistema se realinhasse e que diversas
espécies de animais e plantas sobrevivessem.
Este
aventurar-se diz muita coisa sobre o desenvolvimento dos sapiens:
enquanto os neandertais, mesmo que mais resistentes ao frio, optavam
por lugares mais amenos e evitavam territórios de neve e gelo, os
sapiens
migraram
para estes locais e passaram a desenvolver novas ferramentas, botas e
roupas térmicas feitas de peles de animal, com técnicas de caça
sofisticadas, que lhes permitiu abater grandes predadores do extremo
norte. Da mesma forma, quando chegaram à América, abateram grandes
predadores, tomando seu lugar na cadeira alimentar: Em apenas 2000
mil anos, nossa espécie extinguiu na América do Norte 34 de 47
gêneros de grandes mamíferos e na América do Sul, 50 de 60 (p.81).
Ou seja, a primeira onda colonizadora dos Homo
sapiens
foi um dos maiores desastres ecológicos da história.
“Na
época da Revolução Cognitiva, o planeta abrigava cerca de 200
gêneros de grandes mamíferos terrestres pesando mais de 50 quilos.
Na época da Revolução Agrícola, restavam apenas 100. O Homo
sapiens
levou à extinção cerca de metade dos grandes animais do planeta
muitos antes de inventarem a roda, a escrita ou ferramentas de ferro”
(p.82).
A
primeira onda de extinção é, assim, o período da Revolução
Cognitiva; a segunda, o da Revolução Agrícola; e a terceira, o da
Revolução Industrial.
A
Revolução Agrícola
Durante
2,5 milhões de anos os humanos viveram da coleta e da caça de
animais selvagens. Há cerca de 10 mil anos passaram a manipular
espécies de plantas e animais, espalhando sementes, livrando o solo
de ervas daninhas, conduzindo ovelhas, etc., o que proporcionou aos
humanos maior quantidade de frutas, grãos e carne. Essa revolução
no modo de vida aumentou o total de alimentos de que os humanos
dispunham, mas não necessariamente significava que tinham uma dieta
melhor ou tempo excedente para o lazer.
O
aumento dos alimentos disponíveis para o consumo resultou num
aumento significativo da população, que morria muito, mas nasci
mais; e um aumento do poder das elites; “um agricultor trabalhava
mais que um caçador-coletor e obtinha em troca uma dieta pior. A
revolução agrícola foi a maior fraude da história”. Segundo o
autor, “as plantas domesticaram os Homo sapiens, e não ao
contrário” (p.90). Neste período teve início também a
domesticação de animais, que “se baseou numa série de práticas
brutais que só se tornaram mais cruéis com o tempo” (p.102).
Os
povos agrícolas dependiam de poucos alimentos, como o trigo, batata
e arroz, muitas vezes de apenas um deles, o que levava à morte de
milhões quando a colheita era destruída por pragas, por falta ou
excesso de chuva. Quanto mais tempo se dedicavam à colheita, menos
tempo tinham para agir como antes. Além disso, a sociedade agrícola
não fornecia mais segurança. Estima-se que eram ainda mais
violentos – já que tinham agora uma casa a defender.
A
essência desta segunda revolução é a “capacidade de manter mais
pessoas vivas em condições piores” (p.93). Com celeiros cheios e
casas mais abastadas, atraiam-se mais perigos, o que demandava a
construção de muros. Assim, como a história ensina, “os luxos
tendem a se tornar necessidades e a gerar novas obrigações”,
ansiedades e angústias (p.97). Esse truque do luxo nos mostra bem
como a busca por uma vida mais confortável e tranquila acaba
desencadeando ao mesmo tempo forças não planejadas que também se
tornam poderosas e, assim, transformaram o mundo.
Os
sapiens passaram a viver em “casas”, em pequenas estruturas de
madeira, barro ou pedra, o que resultou num impacto psicológico
importante, que faz da separação dos demais o “paradigma
psicológico de uma criatura muito autocentrada”
(p.108).
Enquanto
os caçadores-coletores não pensavam muito sobre os dias que
seguiriam, os agricultores passavam horas imaginando o futuro. Não
pensar sobre o futuro poupava os primeiros de muitas ansiedades, já
que não pensavam sobre o que não eram capazes de controlar. O medo
da fome fazia com que os agricultores trabalhassem mais, de maneira a
acumularem reservas para tempos difíceis. Porém, o que se vê na
história é que os camponeses jamais foram recompensados pelo
trabalho excedente, vivendo com o mínimo para sua subsistência e
tendo seu trabalho excedente apropriado pelas elites. – Aqui
podemos ver uma análise que corrobora as noções de história e
mais
valia
desenvolvidas por Karl Marx.
Mas
a divisão dos alimentos e sua escassez relativa não foram a razão
dos grandes conflitos. O maior motivo das guerras e calamidades que
envolvem nossa raça foi a
diminuição do senso de cooperação. Assim
como no caso da Peugeot, o Código de Hamurabi, datado de cerca de
1776 a.C. e a Declaração da Independência dos EUA, de 1776 d.C.,
servem como um manual de cooperação, e só ganham realidade pela
crença dos franceses, babilônios ou americanos. No Código de
Hamurabi é possível perceber a noção de ordem social babilônica,
em que o princípio de hierarquia tem grande importância. Ele afirma
que “a ordem social babilônica tem origem em princípios
universais e eternos de justiça ditados pelos deuses” (p.115).
Tanto
um quanto outro afirma que será garantida a paz e a segurança, com
justiça e prosperidade, se os humanos cooperarem eficazmente segundo
os princípios sagrados de que se constituem os documentos. Estes
princípios não se referem a nada objetivo. São princípios que os
humanos inventaram. O que cientificamente descreve-se como um
processo evolutivo sem propósito – a existência e o
desenvolvimento humanos – é traduzido como criação divina que
inclui normas e princípios universais. Assim, a crença numa ordem
imaginada não é algo em si maléfico, pernicioso e enganador; é o
que possibilita a cooperação em grande número. Os mitos e ficções
criaram uma rede de “instintos artificiais“, chamada de “cultura”
(p171). Para garantir que as pessoas continuem acreditando em algo é
necessário trabalho e esforço. Muitas vezes isto inclui violência
e coerção; e requer principalmente que algumas pessoas realmente
acreditem nos mitos coletivos, como os investidores e banqueiros, os
membros da elite, do exército.
As
ciências humanas, na tentativa de explicar como a ordem imaginada se
sustenta, propõem três principais fatores: Esta ordem está
arraigada ao mundo material, ela define nossos desejos; e ela é
intersubjetiva. Ou seja, a estrutura social e material é
constituída a partir dos mitos religiosos e institucionais – como,
por exemplo, a disposição dos cômodos em uma casa ou numa
instituição; nossos desejos partem do que cada sociedade – e
assim, seus membros – vivencia, idealiza, valoriza, acha bonito; e
acontece de maneira coletiva, conectando as consciências através da
comunicação constante e inevitável.
Da
mesma maneira que se pode criar uma ordem imaginada que oprima boa
parte dos membros de um grupo,
também se pode criar algum tipo de ordem imaginada em que os
indivíduos tenham direitos intrínsecos, que não devem ser
suprimidos pelos demais indivíduos e grupos – como concebe o
liberalismo – isto é, “não há como escapar da ordem imaginada”
(p.126), quando se foge de uma concepção de mundo imaginada, busca
se, na verdade, outra.
A
capacidade de imaginar e criar regras também é importante porque a
memória
humana
não é infinita. Com a Revolução Agrícola e a complexificação
das sociedades, a invenção dos números foi crucial para preservar
e organizar grandes territórios. Eram necessários dados matemáticos
para administrar a coleta de impostos, de acordo com o número de
pessoas, etc., o que cérebro algum seria capaz de armazenar.
Os
sumérios foras os primeiros a superar os limites do cérebro humano,
criando um sistema de processamento de dados conhecido como
“escrita”, que combina símbolos. O impacto mais relevante da
invenção da escrita é que ela mudou a forma como os humanos
concebem o mundo. Enquanto no cérebro, os dados são associados
livremente (p.137) – numa conversa a gente começa falando de uma
coisa e termina falando de outra completamente diferente – os dados
armazenados através da escrita se dão de maneira compartimentada e
burocrática, cada coisa na sua caixa; isto nos tornou mais
“calculistas”, não no sentido pejorativo, no sentido matemático.
As
hierarquias, muitas vezes expressas como resultados de leis naturais,
estão também sustentadas em mitos. Assim, as ideias de pureza e
contaminação, de inferioridade e superioridade natural – que se
daria no próprio cérebro – que sustentam os preconceitos raciais
(até os dias de hoje) também o são. “A maioria das hierarquias
sociopolíticas carece de base lógica ou biológica – elas não
passam de perpetuação de eventos ocasionais sustentados por mitos”
(p.151).
É
também produto da imaginação humana a divisão entre homens e
mulheres ou há de fato diferenças naturais/biológicas? O que é
mais consensual nas discussões científicas é que sexo é definido
biologicamente e há ai uma divisão natural, uma diferenciação
natural, “mas “homem” e “mulher” são categorias sociais
(culturais)” (p.156) – é por isso que muitos homens passam a
vida inteira ou até morrem tentando provar que são homens e não
apenas sendo-o. Além disso, enquanto as características biológicas
do sexo se mantiveram relativamente as mesmas ao longo do
desenvolvimento humano, as características dos gêneros (masculino e
feminino) são intersubjetivas e mudam constantemente. Ainda assim, a
estrutura
social patriarcal “tem
sido a norma em quase todas as sociedades” pós Revolução
Cognitiva (p.161). Entretanto, , as formas dos gêneros e a própria
cultura em geral mudaram bastante, seja pelo contato com outras
culturas ou por transições decorrentes da dinâmica no interior
destas culturas. Enquanto as leis da física são consistentes e
resistem a mudanças, toda ordem criada pelos humanos é cheia de
contradições internas, as quais a cultura tenta conciliar.
Por
exemplo, os ideais liberais de igualdade e liberdade são
contraditório: “a igualdade só pode ser assegurada se forem
diminuídas as liberdades” (p172). Desde 1789, porém, nossa
cultura tenta superar esta contradição. Esta é uma característica
essencial a qualquer cultura:
a dissonância cognitiva. Ou seja, todo ser humano, como membro de
uma cultura, tem crenças contraditórias e valores incompatíveis; e
se as pessoas não fossem capazes de tê-lo, a construção e
manutenção de qualquer cultura seria provavelmente impossível.
O
fluxo constante em que as culturas humanas estão não é totalmente
aleatório. Se olharmos numa perspectiva panorâmica que considera
décadas ou séculos, não podemos dizer exatamente se a história
avança no sentido da unidade ou da diversidade, visto que culturas
desaparecem, mas outras surgem. Mas se olharmos com vistas em
milênios ao invés de séculos, veremos que a história caminha
nitidamente em direção à unidade. Durante a maior parte da
história, havia mundos humanos distintos, que coexistiam isolados. A
América e a Europa, por exemplo, foram mundos se desconheciam
durante a maior parte da história. Por volta de 10000 a.C. havia
milhares de mundos isolados coexistindo no planeta, em 2000 a.C.
caiu para centenas, em 1450 d.C. caiu ainda mais. Estes mundos pouco
a pouco passaram a se conectar por laços culturais, políticos e
econômicos.
Pouco
antes do período das Grandes Navegações, a Terra estava 90% já
conectada vivendo em um único megamundo: a Afro-Ásia. Os 10%
restante se referem a outros 4 mundos ainda não conectados: o
mesoamericano, o andino, o australiano e o oceânico. Nos 300 anos
que seguiram “o gigante afro-asiático engoliu todos os outros
mundos” (p.177), um processo demorado, mas irreversível. Hoje,
quase o mundo inteiro compartilha o mesmo sistema geopolítico
(Estados independentes), o mesmo sistema econômico (capitalista), o
mesmo sistema jurídico democrático (ao menos em teoria) e o mesmo
sistema científico.
O
processo de unificação global teve seu estágio mais importante nos
últimos séculos, quando os povos afroasiáticos, americanos,
australianos e oceânicos formaram ligações cada vez mais próxima.
Mas ideologicamente
o passo mais importante se deu antes, durante o primeiro milênio
antes de Cristo, quando surge a ideia de uma ordem universal que
governaria o mundo inteiro. Neste período surgiram três ordens que
podiam unir o mundo inteiro pela primeira vez: as
ordens comercial, imperial e religiosa.
O
desenvolvimento do dinheiro
foi uma revolução mental, uma nova realidade imaginada,
intersubjetiva e que não exige nenhum progresso tecnológico. O
dinheiro é um meio universal de troca que, por sua capacidade de
converter, armazenas e transportar riqueza, contribuiu de maneira
crucial para o desenvolvimento e ampliação das redes de comércio.
Ele funciona “convertendo matéria em espírito” (p.187); é um
“sistema de confiança mutua” mais do que um bem material.
Durante muito tempo as moedas eram feitas de produtos dotados de
valor intrínseco (valor de uso) e, segundo o autor, o avanço mais
importante na história monetária se deu quando os humanos passaram
a confiar em um dinheiro sem valor inerente (valor –apenas – de
troca), de valor apenas cultural.
Por mais pernicioso que pareça, o dinheiro é também o “apogeu da
tolerância humana” (p.193), transcendendo as barreiras étnicas,
religiosas, da linguagem, dos códigos culturais – as diferenças
não importam, todos querem dinheiro. O dinheiro permitiu, assim, que
diversos estranhos cooperassem. Entretanto, contribuiu para a
corrosão de tradições, de relações íntimas e valores humanos,
substituídos pelas frias leis da oferta e procura.
Os
impérios,
por sua vez, reduziram drasticamente a diversidade humana,
conquistando povos, apagando suas características singulares e
formando grupos novos e maiores a partir deles. Ainda que hoje sofra
severas críticas, “o império foi a forma mais comum de
organização política do mundo nos últimos 2,5 mil anos”
(p.198), o que significa que por muito tempo se fez eficaz. Muitos
dos descendentes dos povos conquistados passaram a aprender e a se
sentir membros da cultura de seus conquistadores. Além disso, as
elites dos impérios usaram as riquezas expropriadas para financiar
não apenas forças de coerção, mas também a filosofia e a arte, a
justiça e benevolência. Não devemos, assim, esquecer que o
desenvolvimento da cultura de que fazemos parte e “uma proporção
significativa de grandes realizações culturais da humanidade deve
sua existência à exploração das populações conquistadas”-
gostemos ou não, o fato é esse.
Segundo
o autor, a evolução nos fez xenofóbicos; sempre nos dividimos
entre “nós” e “eles”; a alteridade sempre foi um problema. O
imperador Ciro, por volta de 550 a.C., foi o primeiro que desejou
governar todo o mundo na justificativa de que para o bem de todos,
como numa família, sendo atém mesmo benevolente com seus súditos.
De Ciro pra frente, o que inclui Alexandre Magno, a ideologia
imperial passaria a ser, em sua maioria, inclusiva e universal, em
passa a existir apenas “nós” (p.204).
Ao
invés de principados independentes, os imperadores passaram a buscar
a reunificação e a padronização – uma cultura comum – que
lhes traria grandes vantagens: seria muito difícil dominar um
território em que cada um falasse uma língua e possuísse normas e
valores distintos (muitas vezes conflitantes). Além disso, lhes
facilitava a obtenção de legitimidade, pois tinham como pretexto
disseminar uma suposta cultura superior, que as próximas gerações
de povos conquistados passariam a encarar como sua. Os impérios
acabaram se tornando híbridos, mantendo características de culturas
dominadas e destruindo outras.
A
religião,
terceiro elemento unificador, é definida pelo autor como um “sistema
de valores humanos que se baseia na crença em uma ordem sobre-humana
(...) que não é produto de caprichos ou acordos humanos”, tendo
legitimidade inquestionável (p.218); desta maneira ela estabelece
regras, normas e valores obrigatórios. Para unir grandes territórios
em uma única religião é necessário que esta sustente uma “ordem
sobre-humana abrangente”, que seja considerada verdade em qualquer
lugar, além de missionária e universal. Foi apenas a partir de 1000
a.C. que surgiram as religiões missionárias, o que representou uma
das revolução mais importantes da história, contribuindo para a
unificação e para o surgimento dos impérios e do dinheiro
universais.
No
animismo tendia-se a uma perspectiva local, considerando-se a
perspectiva e os interesses de diversos seres, como plantas e
fantasmas, e as características singulares de cada lugar específico.
As religiões missionárias, por sua vez, tinham as plantas e animais
como propriedades, não como espíritos dotados de valor e vontade
própria. Na perspectiva animista os humanos são apenas criaturas
como qualquer outra que habita o mundo. Na revolução religiosa
surgem outras concepções de mundo, inicialmente o politeísmo e em
seguida, derivado deste, o monoteísmo. O politeísmo supõe que o
“poder supremo que governa o mundo é destituído de interesses e
inclinações e, portanto,” não se preocupa com as questões
humanas (p.222), o monoteísmo concebe um poder supremo universal que
governa todo o mundo em prol da humanidade.
O
politeísmo deu origem a diversos monoteísmos locais, que não foram
capazes de condensar sua mensagem de maneira a expandir seus membros.
O salto se dá com o cristianismo. Entre as religiões politeístas
há mais tolerância, visto que é possível considerar legítimos
diversos deuses ao mesmo tempo, as religiões monoteístas tendem a
ser mais fanáticas, pois implicam a legitimação de apenas um deus
supremo. Além de dar origem a religiões monoteístas, o politeísmo
gerou também religiões dualistas, em que o universo se divide entre
o bem e o mal – forças independentes e dotadas de vontade própria.
Enquanto os monoteístas explicam a existência do mal, do
sofrimento, da desgraça como a maneira encontrada por Deus para que
tivéssemos livre arbítrio, os dualistas afirmam que o mundo não é
governado apenas por um deus bom, mas também por um mau. O
importante aqui é dizer que o monoteísmo que conhecemos hoje é, na
verdade, uma mistura dos legados monoteísta, dualista e politeísta
“sob um único conceito divino” (p.231). O cristão em geral
acredita no Deus monoteísta, no diabo dualista, em santos
politeístas e fantasmas animistas. Um verdadeiro sincretismo –
aceitação simultânea de ideias diferentes.
Há
também, a partir do primeiro milênio a.C. religiões baseadas na
crença em uma ordem sobre-humana que governa o mundo, que é
produto, não de vontades e caprichos divinos, mas de leis naturais.
Nossa Era viu surgir diversas religiões baseadas em leis naturais,
como o liberalismo, o comunismo, o capitalismo, o nazismo; ainda que
seja difícil para muitos vê-los dentro desta categoria. A diferença
aqui é apenas quanto ao que se crê. As religiões teístas são
baseadas no culto aos deuses e as religiões humanistas cultuam a
humanidade; religiões teístas creem em bíblias, alcorões,
mantras. Religiões humanistas creem nos direitos humanos, nas forças
do mercado, na revolução do proletariado. Tanto o humanismo liberal
quanto o socialista se baseia no monoteísmo, já que vê todos os
humanos como iguais, como uma “versão renovada da convicção
monoteísta de que todas as almas são iguais diante de Deus”
(p.240). Todo nosso sistema (jurídico e político liberal) é
baseado na crença em um indivíduo intrinsecamente sagrado,
indivisível, fonte de toda autoridade ética e política (p.245).
O
Nazismo, influenciado pela teoria da evolução, foi a única seita
humanista a romper de fato com a perspectiva monoteísta: nele, a
humanidade não é uma ordem eterna e universal, mas passível de
degeneração ou evolução, cabendo a eles garantir que ela não se
degenerasse na mistura com outras raças. Para eles, quando o
liberalismo e o comunismo propõem o cuidado e a assistência aos
mais fracos, eles permitem que estes “degenerados” sobrevivam, se
reproduzam e “infestem” a humanidade – tornando-a geração a
geração cada vez mais inapta para garantir sua própria
sobrevivência como espécie.
Assim,
o comercio, os impérios e as religiões universais fizeram da
humanidade, quase em sua totalidade, uma sociedade global. Esse
processo de transformação não foi linear, tão pouco ininterrupto.
Neste livro não se pretende explicar porque isso aconteceu, e sim
“reconstruir a série de acontecimentos específicos que levaram de
um ponto a outro” (247), de maneira, portanto, descritiva. Busca-se
fugir a determinismos, que concebam nosso mundo objetivo e nosso
mundo imaginário como um resultado natural e inevitável da
história. Por mais que as forças da natureza criem limites, há
muito espaço para surpresas, que não se relacionam com nenhuma lei
determinista; a história é caótica, contém forças e interações
complexas, produzindo diferença e fugindo a previsões. Assim,
“estudamos história não para conhecer o futuro, e sim para
ampliar nossos horizontes, entender que nossa situação presente não
é natural nem inevitável e que, consequentemente, existem mais
possibilidades diante de nós do que imaginamos” (p.250). Seguindo
as premissas do autor, as escolhas feitas ao longo da história não
têm como fim o bem da humanidade. Não há provas de que estas
escolhas tenham melhorado a vida dos humanos, inclusive porque não
são escolhas sempre conscientes.
Na
abordagem “memética” a cultura é vista como um parasita mental,
que tem os humanos como hospedeiros. Da mesma maneira que a evolução
orgânica se baseia na replicação de “unidades de informação
orgânica” – os genes -, a evolução cultural “é baseada na
replicação cultural de unidades de informação cultural chamada
‘memes”.
As culturas que conseguem se sobressair na reprodução de seus
memes, independentemente do que isto cause aos humanos, são
bem-sucedidas.
Os
pensadores pós modernistas, no lugar de “memes” colocam
“discurso”, mas também acreditam que a cultura se propaga
sozinha, sem preocupação com os interesses humanos, o que também
se considera na “teoria dos jogos”. Em nenhum dos casos os
indivíduos sozinhos possuem consciência e capacidade de mudar
deliberadamente a história.
A
Revolução Científica
A
Revolução Cientifica se refere ao processo histórico que levou à
bomba atômica e à Lua. Neste momento os humanos se tornaram capazes
não apenas de mudar o curso da história, mas de dar um fim a ela.
Em cerca de 500 anos a população humana cresceu 14 vezes, a
produção cresceu 240 vezes e o consumo de calorias, 115 vezes.
.
Antes da Revolução Científica a preocupação dos governantes era
por legitimação de poder e ordem social, não descobertas em
medicina, armas ou crescimento econômico. Sem altos investimentos
por parte das elites e dos governos não teria sido possível
revolucionar o mundo mais uma vez. Essa revolução dependeu do
reforço mútuo entre ciência, política e economia (p.260).
Desde
a Revolução Cognitiva os humanos tentam entender o universo e
desenvolveram diversas formas de conhecimento que o tornam
inteligível. Mas a ciência moderna se diferencia de todas as
tradições de conhecimento que a antecedem em três pontos
decisivos: disposição para admitir ignorância; utilização de
ferramentas matemáticas para a estruturação de teorias
abrangentes; e aquisição de novas capacidades (tecnologias).
Nas
tradições de conhecimento antigas só se admitiam dois tipos de
ignorância. A primeira se refere a algo que alguém não sabe, mas
pode perguntar a alguém que saiba mais – um sábio; não havia
algo que ninguém soubesse e deveria ser descoberto. A segunda se
refere ao que não tem importância e uma tradição inteira pode
ignorar algo que, segundo os deuses, não é relevante. O estudo das
espécies de animais e plantas, por exemplo, não tinha importância
para os antigos, pois não era relevante para suas “verdades
eternas”.
A
disposição cientifica para admitir ignorância permitiu que os
humanos questionassem as premissas básicas da vida e buscassem
evidências que as comprovassem. Isto não significa, porém, que,
comprovada sua ignorância, eles perderam sua disposição para
acreditar em mitos. Para que continuemos cooperando, seguimos
acreditando em alguma ordem imaginada.
De
acordo com os cientistas, nenhuma teoria é totalmente correta, mas o
que importa é sua utilidade. Se ela permite fazer coisas novas, é
considerada conhecimento. A relação entre ciência e tecnologia,
por exemplo, é recente. Nas guerras da antiguidade não havia
grandes diferenças tecnológicas e as guerras eram vencidas na
estratégia, o que perdurou até o século XVI, mas que só realmente
mudou 200 anos depois, quando a ciência, a indústria e a tecnologia
militar se entrelaçaram.
Até
este momento a maior parte da humanidade via seu melhor momento no
passado, e o presente como estagnado ou em decomposição. Com as
descobertas da ciência, a ideia de progresso passa a habitar o
imaginário dos indivíduos. E, de fato, em alguns aspectos a ciência
trouxe avanços: por mais degradante que a vida de muitos seja,
poucos estão de fato morrendo de fome – como ocorria
frequentemente em outros períodos -, “na verdade, em muitas
sociedades há mais pessoais correndo o risco de morrer de obesidade
do que de fome” (p.276).
A
maioria de suas pesquisas é financiada por quem busca nelas um meio
para alcançar fins políticos, econômicos e religiosos. Apoiada em
ideologias e crenças, as pesquisas científicas são incapazes de
estabelecer sua própria agenda. A ideologia justifica seus custos,
suas prioridades e de que maneira serão usadas suas descobertas. Nos
últimos 500 anos o imperialismo, o capitalismo e a ciência – num
ciclo de retroalimentação – constituíram o motor da história. A
Europa, ao desenvolver a ciência moderna e o capitalismo, conseguiu
dominar o mundo com rapidez.
O
imperialismo Europeu foi diferente de todos os outros porque
considerava a ignorância e detinha o ímpeto da descoberta e da
conquista, tendo em mente que o conhecimento adquirido os tornaria
senhores do mundo. Durante a maior parte da história os mapas eram
preenchidos por completo, como se não houvesse nenhum lugar que o
homem não conhecesse e pudesse nomear. A partir do século XVI os
europeus passaram a desenhar mapas do mundo com diversos espaços
vazios.
“A
descoberta da América foi o acontecimento fundacional da Revolução
Científica. Não apenas ensinou os europeus a preferirem observações
presentes a tradições passadas, mas o desejo de conquistar a
América também obrigou os europeus a buscarem novos conhecimentos o
mais rápido possível. Se eles quisessem controlar os novos
territórios, precisariam coletar uma enorme quantidade de dados
sobre a geografia, o clima, a flora, a fauna, as línguas, as
culturas e a história do novo continente. As Escrituras cristãs, os
velhos livros de geografia e as antigas tradições orais eram de
pouca ajuda” (p.298).
Assim,
as expedições europeias conectaram todos os continentes, criando
uma rede de colônias e estabeleceram a primeira rede de comércio
global. Desta maneira transformaram a história do mundo: de culturas
isoladas com histórias próprias, à história de “uma única
sociedade humana integrada” (p.299).
A
Europa não desfrutava, entretanto, de qualquer vantagem tecnológica
para tanto. O que tornou possível a conquista do mundo foi sua
ambição. Somente no século XX outras culturas foram capazes de
adotar uma visão realmente global. Foi assim que, fazendo de uma
batalha local uma causa global, os vietnamitas derrotaram os
norte-americanos, por exemplo – mobilizando forças
anti-imperialistas externas, manipulando a opinião pública global.
Através
de seu ímpeto ao mesmo tempo científico e conquistador os
britânicos decifraram a escrita cuneiforme, que por muitos anos se
manteve um enigma. As novas descobertas e os avanços que propiciaram
contribuíram para que os indivíduos acreditassem (e continuem
acreditando) que o progresso é bom e, assim, o império que o
promove: garantindo legitimidade pela justificação ideológica. A
ciência forneceu ao império o conhecimento, as justificativas e
(futuramente) as tecnologias necessárias para que explorassem e
conquistassem o mundo.
Não
se pode, porém, atribuir aos impérios rótulos simplificados como
bons e maus: tanto há evidências que os faz parecer benéficos,
quando as que os faz parecer terríveis. O mundo como conhecemos foi
criado sobre suas bases, “incluindo as ideologias que usamos para
julgá-los” (p.311). Além disso, a ciência foi financiada por
outras instituições, assim como os impérios também não cresceram
apenas com o apoio da ciência; “por trás da ascensão meteórica,
tanto da ciência quanto do império, espreita uma força
particularmente importante: o capitalismo” (p.314).
Neste
ponto voltamos ao aspecto humano que permeia todo o texto: nossa
capacidade de imaginar e cooperar a partir de ficções. Como num
passe bancário de mágica um milhão de reais de um cliente,
emprestado para outro cliente, que passa a dever em juros, entre
outras transações se transformam em três milhões. O dinheiro e o
sistema econômico em que ele exerce tão importante papel, os bancos
que emprestam dinheiro que não é deles, multiplicando o capital de
maneira nunca antes imaginada, dependem da confiança. A própria
noção de crédito permite “construir o presente à custa do
futuro” (p.318), acreditando na noção de progresso, que levará a
mais bens, recursos, tecnologias, confortos. O crédito já existia
antes, mas não era comum confiar que o futuro seria muito melhor, se
não fosse pior. Em razão disso não era comum que se concedesse
muito crédito.
Tinha-se
a ideia de um total de recursos limitado e que, por exemplo, se eu
colho todas as maças de uma macieira, terei comido a parte de
alguém. Por este motivo, muitas culturas consideram o luxo algo
pecaminoso, fazendo com que as pessoas doem excedentes para a
caridade. A partir desta limitação cultural do crédito, pouco se
empreendia, impedindo o crescimento dos negócios e da economia,
reforçando a ideia de que o futuro não seria muito diferente: “a
expectativa da estagnação se retroalimentava” (p.320).
Com a Revolução Científica vem a ideia de progresso, que pressupõe
a crença na possibilidade de aumento das riquezas e dos recursos a
partir das descobertas científicas. Essa ideia fortaleceu a
confiança no futuro, que gerou crédito, trazendo crescimento
econômico, que por sua vez fortaleceu a confiança, que fomentou o
crédito.
Na
Teoria de Adam Smith em A Riqueza das Nações, a ideia de ser rico
não é mais vista como um pecado, pois não se enriquece tomando
todos os frutos de uma macieira – prejudicando seus vizinhos, mas
plantando mais macieiras e aumentando o todo de que usufruem,
beneficiando também os demais. Nesta visão, os ricos são vistos
como pessoas úteis e benévolas, já que impulsionam o crescimento
da sociedade.
O
capitalismo começou como uma doutrina econômica; era ao mesmo tempo
descritivo e prescritivo: se referia ao funcionamento do dinheiro e
dos lucros produzidos pelo investimento e reinvestimento na produção.
Hoje, ele abrange também a forma como as pessoas pensam e educam
seus filhos. No modo capitalista de vida o crescimento econômico é
um “bem supremo”, já que dele dependem a liberdade, a segurança
e o conforto.
O
sistema de crédito capitalista surgiu graças ao imperialismo
europeu, ainda que a ideia de crédito tenha sido desenvolvida muito
antes. Embora os europeus, até o fim do século XVIII, tivessem
menos capital à disposição do que os chineses, muçulmanos e
indianos, e no começo não contassem com investimentos por parte dos
reis e generais; com a chegada das elites de comerciantes, banqueiros
e seu modo de pensar mercantil, foi possível o aumento do
investimento, o aumento das descobertas, que levaram a novos
investimentos
Colombo,
em 1484 na sua empreitada que levaria à “descoberta” da América,
pediu financiamento ao rei de Portugal, que lhe foi negado, tendo em
vista todos os riscos de fracasso daquela aventura. Ele então buscou
apoio a outros potenciais investidores na Itália, França e
Inglaterra. Só teve sucesso através da Rainha Isabel, que governava
a Espanha recém-unificada.
A
“descoberta” da América com todos os recursos de que dispunha e
todos os caminhos que iluminava levaram ao aumento da confiança e o
fortalecimento do sistema de crédito, que gerou um crescimento
econômico impressionante em várias metrópoles capitalistas. Mas a
confiança no crédito – e no futuro melhor, podem levar a
frustrações trágicas. O autor cita como exemplo a “bolha de
Mississipi” (que você mencionou em uma conversa). (p.333-334)
O
capitalismo pode levar à miséria de muitos, mas paradoxalmente o
capital foge de países ditatoriais, que não garantem os direitos
individuais e a segurança da propriedade privada. Portanto, o
capital e a política se influenciam mutuamente e resultam em
diversos debates sobre a legitimidade de sua interferência mútua. A
doutrina do livre mercado, que prega a mínima atuação do Estado na
Economia, é a variante dominante do credo capitalista atualmente.
Mas esta crença beira à ingenuidade; sem regulação do mercado por
parte dos governantes, que garante o mínimo de fairplay
no
jogo do mercado (vide o exemplo de Mississipi) perde-se confiança,
crédito e, assim, deprime-se a Economia.
Além
disso, é necessário algum órgão de proteção dos trabalhadores.
O capitalismo aprofunda a desigualdade, já que não consegue
“garantir que lucros sejam ganhos de forma justa, ou distribuí-los
de maneira justa” (p.341); ainda assim, ele continua apostando no
futuro, jurando que a solução dos problemas é questão de tempo e
que a ciência é capaz de melhorar a vida humana.
O
crescimento econômico, entretanto, depende não apenas de
investimentos e confiança, mas de combustível e matérias-primas;
sem isso todo o sistema desmorona. Esses recursos são relativamente
escassos; nos últimos anos a ciência mudou essa realidade; “a
Revolução Industrial foi uma revolução na conversão de energia”
(p.349).
Durante
a maior parte da história os corpos (de humanos e outros animais)
eram o único “dispositivo de conversão de energia disponível”
(p.344). Através da energia muscular os humanos realizavam suas
tarefas e os animais domesticados as facilitavam. A energia solar era
a grande fonte de energia do mundo; até que surgiu uma nova
tecnologia que convertia calor em movimento: o motor a vapor. Antes a
humanidade dependia da energia solar convertida pelas plantas - que
eram a base da alimentação dos animais domésticos e humanos; Agora
é possível a produção de energia e matéria prima abundante e
barata como nunca se viu antes. Isso não significa uma cisão
completa com a Revolução Agrícola, pelo contrário: “os métodos
de produção industrial se tornam o sustentáculo da agricultura”
(p.351). As máquinas substituíram humanos e animais. A mecanização
do cultivo de plantas e a pecuária industrial constituem a base da
ordem socioeconômica moderna.
Em
quase todas as sociedades os camponeses representavam 90% da
população, pois a maior parte da produção era usada para
alimentar a eles próprios e aos animais domesticados, sobrando pouco
para sustentar artesãos, professores, burocratas, operários e
funcionários administrativos. Com a industrialização, menos
agricultores eram necessários para alimentar a população como um
todo, permitindo que as cidades se desenvolvessem. Com isso a
população camponesa diminuiu e a urbana cresceu, junto com ela
cresceu a produção industrial e a oferta de produtos. Pela primeira
vez, a oferta supera demanda.
Inclusive,
o capitalismo depende de um crescimento constante da produção e,
obviamente, é necessário que as pessoas comprem os novos produtos.
Como durante a maior parte da historia se viveu em situação de
escassez de recursos, o desperdício e o luxo eram vistos com maus
olhos, sendo a frugalidade a característica virtuosa do homem comum.
O capitalismo precisou convencer as pessoas, mudar sua psicologia,
para que vissem o esbanjar com bons olhos e que não sentissem culpa,
mas orgulho ao consumir diversos produtos de que não precisam;
instaurou uma ética consumista que permeia todo o consumo:
vestuário, saúde, alimentação, etc.
Fator
interessante da religião capitalista e consumista é que ela promete
um paraíso mais fácil de alcançar do que o das religiões
anteriores. Basta deixar que a ambição domine e a sociedade
alcançará o progresso. Diante disso, a escassez pode ser uma
preocupação equivocada, mas a destruição da natureza, ou sua
transformação violenta, são um perigo real para humanidade.
Os
sapiens, ainda que tenham se tornado “impermeáveis aos caprichos
da natureza” (p.363), se tornaram cada vez mais dependentes das
regras e valores que orientam os governos e as indústrias modernas.
No passado os ciclos relativamente irregulares da natureza, o clima,
as estações, etc. orientavam o dia-a-dia dos indivíduos. Na
indústria moderna a precisão e uniformidade são fundamentais.
Assim, o relógio se torna o regulador universal dos períodos
produtivos. O cronograma da indústria passou a orientar o
comportamento e as atividades humanas.
Os
humanos tiveram que se adaptar à cultura das cidades, à diminuição
da população camponesa, à democratização, entre outras novas
realidades. De uma vida cotidiana em famílias, numa comunidade que
existia com base em tradições locais e numa “economia de favores”
(p.367), passou-se a viver de maneira mais autônoma e desconectada
de tradições. O Estado e os mercados enfraqueceram vínculos
familiares e colocaram em seu lugar a burocracia, a escola, os
militares, a própria noção moderna de indivíduo autônomo. Para
as mulheres, que antes eram (assim como as crianças) legalmente
consideradas propriedades dos homens (pais e maridos) e destituídas
de direitos, foi um avanço importante.
Mas
esta liberdade individual não vem de graça, “milhões de anos de
evolução nos projetaram para viver e pensar como membros de uma
comunidade; em apenas dois séculos, nos tornamos indivíduos
alienados (separados). Nada atesta melhor o poder incrível da
cultura” (p.371). Ainda que a família não tenha desaparecido por
completo da estrutura moderna, ela não manda no jogo. As fronteiras
nacionais, da mesma forma têm menos importância, surgindo
comunidades de consumidores que se distribuem pelos territórios
nacionais.
.
Antigamente as pessoas acreditavam menos na mudança porque não era
tão possível percebê-las – elas aconteciam a longo prazo. A
ordem social se tornou mais flexível; hoje tudo pode mudar do dia
pra noite. Hoje, a característica mais visível da sociedade é a
mudança incessante.
Destas
mudanças bruscas e intermináveis podemos esperar consequências
drásticas, entretanto é possível dizer, considerando os argumentos
autor, que vivemos a época mais pacífica de todo o percurso humano.
A diminuição da violência se deu através do Estado. Não se pode
dizer com precisão se no interior dos Estados a violência diminuiu
ou não, mas a violência entre Estados independentes, que resultaram
em guerras mundiais, está em seu menor índice. Ainda que guerras
aconteçam, elas não são a regra. Os estudiosos tentam explicar
esse avanço identificando fatores que teriam contribuído para a
pacificação: a guerra, tendo os sapiens em mãos a tecnologia
nuclear, poderia destruir a humanidade; além disso, ela era cara e
prejudicava acordos comerciais. O que concluiu o autor é que
“estamos no limiar do céu e do inferno” (p385).
Nos
últimos 500 anos a sociedade cresceu e mudou de maneira decisiva a
política, a psicologia e o cotidiano. Mas os 70 milênios pós
Revolução Cognitiva levaram a um mundo melhor para se viver? Os
indivíduos são mais felizes? Os românticos acreditam que nossa
percepção é mais pobre e desconectada, mas as evidencia mostram
diversos avanços irrecusáveis, como os da medicina. Entretanto,
esses avanços na sociedade humana não devem eclipsar o mal que isso
representou para as demais espécies. Se foi um resultado feliz para
os humanos, foi bastante infeliz para os animais, que também são
passíveis de sentir dor.
A
felicidade, um bem-estar subjetivo, não é facilmente mensurável;
os biólogos sustem que nosso estado emocional é resultado de
processos bioquímicos, por hormônios – não determinado por
parâmetros externos, como a condição financeira, os direitos
sociais, etc. Como nosso sistema bioquímico não mudou muito, não
se pode dizer que somos nem mais nem menos felizes. Entretanto, o
desenvolvimento de substancias que alteram nossa produção hormonal
pode, de fato, nos fazer sentir mais felizes. Nesta visão felicidade
e prazer são sinônimos.
Esta
visão biológica da felicidade é contestada, porém, por outros
estudiosos, que relacionam a felicidade à obtenção de um sentido
para vida. Por mais difícil e desprazerosa que uma vida seja, ela
pode gerar grande felicidade se estiver carregada de sentido, ao
passo que mesmo uma vida fácil não representaria necessariamente
mais felicidade se quem a vive não encontrasse um sentido para
viver. A felicidade, nesta visão, depende da capacidade de encontrar
um significado –imaginado – para a dor, para a morte, para o
sofrimento.
Essas
suas visões concebem a felicidade como um bem-estar subjetivo, em
que ela é pensada de acordo com a perspectiva do indivíduo. É
comum em nossos tempos ouvirmos e dizermos que “a felicidade só
depende de nós mesmos; somos nós como indivíduos que devemos
decidir o que é melhor para nós mesmos e o que nos fará mais
felizes”. Não devemos esquecer, porém, que a sociedade nos impõe
desde crianças quais são as concepções aceitas de felicidade; é
a sociedade que dispõe de uma gama diversa de sentidos para a vida;
é ela que constrói os limites dos nossos desejos aos
quais devem se adaptar as nossas expectativas.
Mesmo
que tenhamos nos diferenciado das outras espécies, estamos sujeitos
a limites biológicos. Isto parece estar mudando desde o início do
século XXI, quando nossa espécie começou a desafiar as leis de
seleção natural, “substituindo-as pelas leis do design
inteligente” (p.408). Isso começou já na Revolução Agrícola
quando, ao cruzar deliberadamente espécies grandes e dóceis de
galinhas, os humanos passaram a criar novas espécies de galinhas,
produzidas, portanto, não pela natureza ou por algum deus, mas pelo
design inteligente dos humanos. Hoje, os cientistas estão criando
seres vivos em laboratórios, inexplicáveis pelas leis de seleção
natural.
Com
a tecnologia disponível faz sentido pensar que em pouco tempo
poderemos criar novamente os mamutes extintos, os dinossauros, além
de cyborgs, humanos “artificiais”, cura para diversas doenças,
aumento das capacidades cognitivas e emocionais; e até mesmo
ressuscitar os neandertais. Todos esses “avanços” têm como
obstáculo as “objeções éticas e políticas que desaceleram as
pesquisas com humanos” (p.415), que não poderão, porém, freá-las
por muito mais tempo.
O
futuro tem tudo para ser um verdadeiro Black Mirror. A mitologia
científica de Frankenstein também representa bem as questões
paradoxais de nossos tempos, em que se busca criar homens superiores,
que provavelmente olhariam para os sapiens como um dia olhamos para
os neandertais.
O
importante para o autor é que “a próxima etapa da historia
incluirá não só transformações psicológicas e organizacionais
como também transformações sociais na consciência e na identidade
humana” (p.424), o que poderá subverter o próprio conceito de
“humano”. O que devemos nos perguntar, assim, é: o que
gostaríamos de nos tornar? E como possivelmente poderemos mudar até
mesmo nossos desejos, o que iremos querer? Há 70 mil anos nós
éramos uma espécie insignificante, mas nos milênios seguintes
alteramos todo o mundo ao nosso redor, nos tornamos deuses da criação
e da destruição.
Diante
de todas as possibilidades que criamos parece que estamos sempre
insatisfeitos, uma das características que mais marcam a nossa
existência. Ainda que sejamos excepcionalmente poderosos, não
sabemos ao certo o que fazer com isso. E, conclui o autor, “existe
algo mais perigoso do que deuses insatisfeitos e irresponsáveis que
não sabem o que fazem?” (p.428).
Ao
final desta incrível viagem pela história da humanidade, portanto,
o autor nos convida a refletir sobre nosso futuro. Como afirmou Karl
Marx, os homens fazer sua história, mas sem saber exatamente como.
Nossa história de criação divina, à medida que nos tornamos
deuses, e de destruição diabólica, que causamos de maneira
inigualável, dependeu da nossa capacidade particular de cooperação.
O que quer que tenhamos feito de nós e o que quer que venhamos a
fazer, fizemos e faremos juntos.
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